Mulher X Homem: em Machado de Assis



Através das leituras e dos estudos realizados durante todo esse percurso investigativo (sobre as personagens femininas e masculinas), constatou-se que não é sem razão que o romancista Machado de Assis seja considerado, por muitos, um dos maiores escritores da literatura. Também não é sem razão que ele, como criador de histórias aparentemente insípidas ou banais, mas extremamente complexas, seja lido com maior agudeza e acuidade por seus leitores cada vez mais atentos e críticos. Machado adquire o estatuto de escritor ímpar da literatura brasileira, e, por causa disso, é tido como um homem de caráter “moderno” e escritor inovador para a época em que viveu.
A principal questão que moveu este trabalho foi à maneira como Machado de Assis traça o perfil de suas personagens, especialmente, as femininas. Seria por, demais simplório, afirmar que as figuras femininas construídas por esse escritor, apesar de, muitas vezes, apresentarem-se ingênuas, sensíveis, ou em situação de abandono, ou até mesmo de aspecto frágil, são, na verdade, altivas, elegantes, determinadas. Essa aparente fragilidade e ingenuidade subliminar projetadas nelas em seus romances trata-se, muitas vezes, de subterfúgio dos narradores machadianos para dissimular comportamentos mais audaciosos de suas personagens. Tanto Capitu, quanto Virgília e Sofia conseguem falar por si mesmas, mesmo que pela palavra de seus narradores.
A fim de abordar personagens femininas, fez-se necessário um estudo e uma reflexão sobre “gênero” na tentativa de entender o feminino além da distinção de sexos. Para tanto, teve-se que buscar aporte teórico em estudiosos sobre o assunto e fundamentar nossa reflexão no sentido de, a partir do conhecimento do que é o ser feminino ou ser masculino, tese mais segurança para tratar de tema tão complexo.
Ao realizar essa reflexão, entendeu-se que já era possível analisar personagens femininas machadianas enquanto criaturas que também conseguiram adentrar no plano social do masculino. É também propósito desse estudo demonstrar que, em espaços sociais predominantemente masculinos, essas personagens não aceitaram a posição de silêncio e de submissão que lhes foi imposta.
Apesar de Machado de Assis ambientar seus romances no espaço social fluminense e tendo o Rio de Janeiro como pano de fundo, as suas personagens femininas, por suas características e especificidades, são consideradas universais e atemporais, pois são portadoras de individualidade, capazes de encarnar suas próprias ideias e colocá-las em prática.
Assim como as mulheres machadianas, a escritura de Machado de Assis está sempre a fascinar, por suas artimanhas, cheia de trapaças para enganar os leitores. E, ao fazer as releituras de suas obras, percebe-se o quão é inútil esperar por respostas aos questionamentos postos por ele na tessitura do texto. Pode-se notar que, ao contrário do que se deseja, ao final das releituras, Machado atira leitores e críticos em um mundo mais encantador, mais atraente e sedutor e, por que não dizer divertido, que é o universo literário, principalmente o seu.

Entretanto, os romances realistas de Machado de Assis, principalmente Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, são narrações construídas em flash-back, há sempre protagonistas masculinos já cinqüentões e solitários relembrando as vivências na tentativa de atar as duas portas da vida: Infância e velhice. São obras de caráter memorialista que revelam a visão de quem teve uma vida amarga e fracassada. Compreende-se o fato da figura feminina ser sempre tratada de maneira negativa. É a visão masculina determinada pela ideologia da época a respeito da condição da mulher. Por exemplo: Ao apresentar o perfil de Capitu, o narrador releva traços da psicologia feminina voltados para a “arte” de dissimular, e mostra a esperteza da mulher e a capacidade, que a mesma tem, para sair de situações embaraçosas, até mesmo a tática, que ela usa para enganar os homens. A visão que Machado tem a respeito da figura feminina em seus romances realistas parece ser do tipo: “Em mulher não se pode confiar.”
Bosi, apresentando uma tese desenvolvida por uma pesquisadora norte americana estudiosa da obra de Machado de Assis, Helen Caldwel, propõe um questionamento importante à cerca da imagem de adúltera comumente associada à personagem Capitu. Segundo o crítico, a pesquisadora ficou muito preocupada com o fato de que a história tenha sido contada pelo marido ciumento e rancoroso. Sabemos que a suspeita de que Capitu fosse uma pessoa capaz de enganar permeia todo o romance e toda a expressão do próprio narrador. Nesse caso, hipoteticamente é possível afirmar que o narrador tenha arquitetado o plano de mentir de propósito somente para desqualificar a figura feminina, o que era, aliás, comum para a ideologia da época.
Outro aspecto relevante dos romances realistas de Machado de Assis é que nestes há sempre uma voz narrativa, um personagem central, sempre masculino. Como o narrador é esse personagem central toda a narrativa está condicionada a sua própria visão dos acontecimentos. Além disso, o personagem faz a sua narrativa em um tempo muito posterior ao dos acontecimentos narrados. Já velho, rancoroso e magoado com os acontecimentos da vida amorosa fracassada é compreensível o fato deste ter uma visão negativa da figura feminina. Visão esta facilmente percebida nos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. O ponto de vista é masculino moldado pela ideologia patriarcal vigente no século XIX. Exemplificamos aqui, a personagem Capitu, o propósito da linha narrativa de Bento Santiago é o de caracterizar de forma inequívoca a protagonista como uma jovem voluntariosa, ativa, racional, calculista, que lida facilmente com situações constrangedoras e que é disposta a tudo para conseguir seus objetivos.
O casamento de aparências, como o caso da personagem Sofia. Ao qual, era tida como objeto de exibicionismo do marido. Ressaltando, assim, as traições, tanto de Sofia, como de Virgília.
Por conseguinte, salientamos que a compreensão das personagens femininas, em contraposição com as masculinas, na obra machadiana exige a princípio o conhecimento do personagem narrador e o ponto de vista através do qual o mesmo faz sua narrativa. Entender Dom Casmurro, por exemplo, é entender o modo pelo qual Machado de Assis cria o personagem Bento Santiago. É levar em conta que tudo está subordinado e tem sua existência ficcional condicionada a um sistema narrativo que se baseia exclusivamente numa visão masculina a cerca do universo feminino.




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