Fernando Pessoa - Quatro em Um
SAUDOSISMO
O “Saudosismo” antecedeu os movimentos
estéticos incorporados pelo poeta e teve início em 1910 com a fundação da
revista “A Águia”, como órgão da “Renascença Portuguesa”, que era uma revista
mensal a qual trazia assuntos como literatura, arte, ciência, filosofia e
crítica social. O saudosismo deu-se em razão do conturbado período político e
social que Portugal enfrentava e podia ser considerado um movimento em busca da
reconstrução de um país e de uma “alma nacional” devastados pela grave crise, o
qual anunciava o pensamento de uma “futura civilização europeia” que seria, na
verdade, a “civilização lusitana”. Era preciso criar um novo país, ou até
mesmo, ressuscitar a Pátria Portuguesa.
Desta forma, chega-se
à Saudade no seu sentido mais puro, verdadeiro e autêntico da palavra, ou seja,
Saudade vista no seu âmago religioso, como também, de uma filosofia ou de uma
política tipicamente portuguesas; é um “sentimento-ideia ou uma
“emoção-refletida” como preconizou Teixeira de Pascoaes, o seu mentor. Ademais,
seria somente através dela um possível resgate da tão almejada “Renascença
Portuguesa”. Este movimento foi determinado por uma filosofia puramente
lusitana em decorrência dessa saudade e em dar um sentido aos intelectuais da
Raça Portuguesa.
PAULISMO
O primeiro movimento
estético na obra do escritor foi o chamado “Paulismo”,
e que aparece no poema “Impressões do Crepúsculo” o qual fora publicado na
revista “A Renascença” de 1914, que vem exposto, em parte, a seguir:
“Pauis
de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...
Dobre
o longínquo de Outros Sinos...Empalidece o louro
Trigo
na cinza do poente...Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão
sempre a mesma, a Hora!...Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio
que as folhas em nós...Outono delgado
Dum
canto de vaga ave...Azul esquecido em estagnado...
Oh
que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que
pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo
as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que
não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos
de Imperfeição...Ó tão antiguidade...”
Nesta tendência encontra-se
a estética encontrada no decadentismo do Simbolismo e já a direção para o
movimento do Modernismo. O nome “Paulismo” deve-se em razão da palavra “pauis”, a qual inicia o poema supracitado,
e que significa “pântano”. Esse estilo literário é definido como sendo uma
associação de idéias desconexas, pelas anormalidades sintáticas, pelo tumulto
causado entre o subjetivo e o objetivo, pelo vocabulário expressivo do tédio que
assola a alma, e por um desejo de algo novo que permeava a arte de um sonho.
Era preciso romper com o Simbolismo que não se adequava mais aos anseios de uma
época que necessitava urgentemente de algo novo devido ao caminho aberto
trazido pelos modernistas.
As principais características do Paulismo são:
a confusão entre o objetivo e o subjetivo; expressão do vago e do indefinido;
violação das regras de sintaxe; utilização de letras maiúsculas para dar maior
expressividade ao sentido das palavras; uma tentativa de aproximação de idéias
desconexas e uma sutileza nas sensações sugeridas na poesia.
SENSACIONISMO
O segundo movimento
estético da poesia de Fernando Pessoa é o “Sensacionismo”
que, para ele, é a “base de toda arte”,
e que parte da primazia de que a única realidade da vida é a “sensação”. Para o escritor, somente “sentir é criar.
Sentir é pensar sem idéias, e por isso sentir é compreender, visto que o
Universo não tem idéias. Só sentir é crença e verdade, sentir é compreender. Pensar
é errar. Pensar é limitar. Raciocinar é excluir”.
(Fernando Pessoa, in “Sobre - «Orpheu
- Sensacionismo e Paulismo”)
Como características
principais podem-se considerar as seguintes: A base da arte é a sensação e esta
deve ser sentida puramente como é; deve ser uma sensação intelectualizada, ou
seja, deve haver uma tomada de consciência dessa sensação para que ela tenha o
poder de ser expressa. Portanto, toda arte é a conversão de uma sensação numa
outra sensação.
Os princípios do
Sensacionismo, segundo Fernando Pessoa, são os seguintes:
1. “Todo
objeto é uma sensação nossa”.
2. “Toda
a arte é a conversão duma sensação em objeto”.
3.
“Portanto, toda arte é a
conversão duma sensação numa outra sensação”. (cf. MOISÉS, Massaud, in “A Literatura Portuguesa
Através dos Textos, São Paulo, Cultrix [2006], p. 452).
“Autopsicografia”
“O
poeta é um fingidor,
Finge
tão completamente
Que
chega a fingir que é dor
A
dor que deveras sente.
E
os que leem o que escreve,
Na
dor lida sentem bem,
Não
as duas que ele teve,
Mas
só a que eles não têm.
E
assim nas calhas de roda
Gira,
a entreter a razão,
Esse
comboio de corda
Que
se chama coração”
“Isto”
“Dizem que finjo ou minto
Tudo
que escrevo. Não.
Eu
simplesmente sinto
Com
a imaginação.
Não
uso o coração.
Tudo
o que sonho ou passo,
O
que me falha ou finda,
É
como que um terraço
Sobre
outra coisa ainda.
Essa
coisa é que é linda.
Por
isso escrevo em meio
Do
que não está ao pé,
Livre
do meu enleio,
Sério
do que não é.
Sentir?
Sinta quem lê!”
“Hora
Absurda”
“O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas…
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso…
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso…
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte…
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto…
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia…, e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte…
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões…
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões…
Chove ouro baço, mas não no lá-fora…É em mim…Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela…
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora…
No meu céu interior nunca houve uma única estrela…
Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto…
A chuva miúda é vazia…A Hora sabe a ter sido…
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!…Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido…
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má…
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos…
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas…
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas…
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos…
Ah, como esta hora é velha!… E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam…
O palácio está em ruínas… Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo… Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono…
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada…
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas…
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros…
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?…
Por que me aflijo e me enfermo?…Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas… Veio o sol e já tinham partido…
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido…
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora…
As próprias sombras estão mais tristes…Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda…
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma…
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios…
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios…
Ergueram-se a um tempo todos os remos…pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar…Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras…
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente…
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido…
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido…
Sermos, e não sermos mais!… Ó leões nascidos na jaula!…
Repique de sinos para além, no Outro Vale… Perto?…
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula…
Por que não há de ser o Norte e Sul?… O que está descoberto?…
E eu deliro… De repente pauso no que penso…Fito-te…
E o teu silêncio é uma cegueira minha…Fito-te e sonho…
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho…
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?…
Ah, deixa que eu te ignore…O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque…
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos….
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim…
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim…
Alguém vai entrar pela porta…Sente-se o ar sorrir…
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem…
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem…
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras…
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!…
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!…
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra…
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce…
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito…
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito…
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!…
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!…
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!
O que é que me tortura?… Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos…
Não sei…Eu sou um doido que estranha a sua própria alma…
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos…”
INTERSECCIONISMO
O Interseccionismo na poesia de Fernando Pessoa
caracteriza-se pela intersecção de vários níveis simultâneos: sonho e
realidade, percepção interior e exterior, objetiva e subjetiva, o presente e
passado, o eu e o outro. É como se
pudéssemos perceber duas formas geométricas nítidas, interceptando uma à outra.
Para alguns críticos, este ponto reflete a técnica cubista.
O cubismo rompe o conceito de arte como imitação da natureza. Na
pintura, trata de imagens fracionadas em planos sobrepostos. A idéia era
representar os objetos sob todos os ângulos, decompondo a imagem em formas
geométricas, que se interceptam e sucedem. Na literatura, prezava a
subjetividade e o ilogismo, desintegração da realidade numa linguagem um tanto caótica.
Por outro lado, há também o entendimento de que o Interseccionismo
não deriva do cubismo, por este representar várias superfícies e ângulos de um
objeto ao mesmo tempo ao passo que, na poesia, um plano subjuga o outro (o
imaginário prevalece sobre o real).
Chuva Oblíqua foi o poema modelo do Interseccionismo. Nele
Fernando Pessoa entrecruza dois planos: a paisagem vista e a imaginária. Em
cada trecho ele escreve sobre um tema diferente, mas sempre usando a técnica de
intercalar duas figuras, duas paisagens opostas. A imaginação criando forças e
sobressaindo à realidade.
A história do Interseccionismo começa em 1914, após a criação de
heterônimos, quando Pessoa escreveu a amigos dizendo que descobriu uma nova
forma de Paulismo. Começou, então, a divulgar o novo estilo. Ele planejou,
inclusive, lançar uma revista ou um manifesto do Interseccionismo, mas o
projeto não foi adiante. Mais tarde, o próprio poeta considerou a poesia
interseccionista uma experiência lúdica, e abandona o estilo.
“Chuva Oblíqua”
“Atravessa esta paisagem
o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as
velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas
por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores
antigas...
O porto que sonho é sombrio
e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste
lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é
porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas
árvores ao sol...
Liberto em duplo,
abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e
calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos
troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas
folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é
transparente
e vejo no fundo, como uma estampa
enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore,
estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o
porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver
esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim
dentro,
E passa para o outro lado da minha
alma...
II
Ilumina-se a igreja por
dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva
a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva
porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora
são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendor do altar-mor
é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene
na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a
sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de
haver coro...
A missa é um automóvel
que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em
hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva
absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água
perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da
igreja
Na chuva que cessa...
III
A Grande Esfinge do Egito
sonha pôr este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me através da
minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as
pirâmides...
Escrevo - perturbo-me de
ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo
feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a
escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto
através dos traços que faço com a pena...
Ouço a Esfinge rir por
dentro
O som da minha pena a correr no
papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão
enorme,
Varre tudo para o canto do teto que
fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele
e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me
com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam
corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados
erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Queóps em
ouro velho e Mim!...
IV
Que pandeiretas o
silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da
luz...
De repente todo o espaço
pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe
do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho
de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes, bailam parados
dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar
no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos
dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob
o sol,
Cruzam-se com grandes grupos
peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das
barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos
encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente
que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta
no ar,
Andam por cima das copas das árvores
cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos
penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que
as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a
lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o
chão deste dia de sol...
De repente alguém sacode
esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades
cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos
de portos
Com grandes naus que se vão e não
pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus
dedos...
As minhas mãos são os passos daquela
rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..
VI
O maestro sacode a
batuta,
E lânguida e triste a música rompe...
Lembra-me a minha
infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de
quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum
lado
O deslizar dum cão verde, e do outro
lado
Um cavalo azul a correr com um jockey
amarelo...
Prossegue a música, e eis
na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro
branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey
amarelo...
Todo o teatro é o meu
quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem
a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no
meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey
amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os
músicos...)
Atiro-a de encontro à
minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos
meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um
cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima
do muro
Do meu quintal... E a música atira com
bolas
À minha infância... E o muro do quintal
é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães
verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro
branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de
minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um
jockey amarelo...
E dum lado para o outro,
da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé
da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja
onde comprei
E o homem da loja sorri entre as
memórias da minha infância...
E a música cessa como um
muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus
sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro,
jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da
fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola
branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas
costas abaixo... “
REFERÊNCIAS
COELHO, Jacinto do
Prado. Diversidade e Unidade em Fernando
Pessoa. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 34 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos.
30.ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
PESSOA, Fernando. O Eu Profundo e Os Outros Eus. 20.ed.
São Paulo: Nova Fronteira.
SEVERINO, Antônio
Joaquim. Metodologia do Trabalho
Científico. 22. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
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