Análise da Narrativa: Conto - O Enfermeiro
O Enfermeiro,
Machado de Assis
Parece-lhe então que o que se deu
comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição
única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito,
pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em
que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e
papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à
lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos,
impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem;
perdoe-me
o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se
lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça
também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus
sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de
agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava
os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio,
que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859,
recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se
conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de
enfermeiro ao coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me,
aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e
fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a
vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem
insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos.
Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi
que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entenderme com
o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e
caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando
muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de
gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições,
que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera,
prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das
escravas; dous eram até gatunos!
— Você é gatuno?
— Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um
gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou
que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que
respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Contolhe esta particularidade,
não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a
melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu
era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma
lua-de-mel de sete dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma
vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às
vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um
modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A
moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou
quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a
gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau,
deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava
farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo
uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso
mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao
quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de
velho. Instou tanto que fiquei.
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não
posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu
enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da
minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe
puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio?
— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu
vivamente, arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das
bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo,
fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno,
idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma
parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em
fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo,
aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu
sozinho para um dicionário inteiro.
Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia
ficando. Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava
ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de
acostumarme à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para
avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia
mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo.
Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse
de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que,
nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por
vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava
pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato
era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse
tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os
excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.
No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o
vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo
mais. Concedilhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o
estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu.
Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um
acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçoume de um tiro, e
acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na
parede onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo
sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d’Arlincourt,
traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância
da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de
cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também.
Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia
delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e
arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na
face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente,
pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e
dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à
vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala
contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo
dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio
vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas.
Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir
dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de
convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu
ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento,
igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do
quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer
coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria
pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada;
tudo calado. Voltava a andar à toa na sala, sentava-me, punha as mãos na
cabeça; arrependia-me de ter vindo. — "Maldita a hora em que aceitei
semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico,
o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais
algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das
janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia
tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o
chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me
ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da
vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente
no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor
complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi
três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada;
recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei
voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não
cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar
na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os
vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca
aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que
fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei
alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um
escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e
ao médico.
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de
ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes,
dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer
despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de
um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem
alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava
fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam
na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora,
fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou
nelas, disse a outra com piedade:
— Coitado do Procópio! Apesar do que padeceu, está muito
sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado.
Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua
deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os
olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com
os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente
de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de
Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava
pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para
tanta melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto,
chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E
elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante,
e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma
missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz
convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos
todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí
esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a
prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia
ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n’alma!" E contava dele
algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a
carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do
coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que
lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava
escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma
cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime
estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se
prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava
a notícia.
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era rico.
— Realmente, provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham
parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber
um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei
nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer
desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo;
receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só
escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude;
pareceu-me que ficava assim de contas saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção
que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham
um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A
imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do
crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado,
defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa
idéia.
E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as
injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o
tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a
fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver
muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas
semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de
vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E
quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser,
era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixeime também nessa idéia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e fui.
Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os
legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu
servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a
paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na
vila.
Constituí advogado; as cousas correram placidamente.
Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele,
mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era
austero...
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas
extraordinárias.
Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de
curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu
sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía
alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento...
Um pouco?
Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e
todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e vinham
outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das
crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia
dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos
pedaços recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado
a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi
perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na
posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos
meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me
dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano
primitivo: distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns
paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo
trinta e dous contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de
mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio
eu, no Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e
desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias.
Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte
era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu,
involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que
ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos
valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por
epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem
aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."
Fim
Fonte:
ASSIS,
Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Várias
Histórias
Legenda:
Exposição;
Complicação;
Clímax;
Desfecho.
Análise
O
conto, O enfermeiro é narrado em 1º pessoa pelo protagonista-narrador Procópio.
Ele é convidado a cuidar de um velho enfermo, o coronel Felisberto, homem muito
rude, o qual acaba sendo morto "acidentalmente" por Procópio. Essa
obra literária começa com Procópio, já velho e à beira da morte, narrando a sua
história sobre os meses infernais que passara ao lado do coronel, como se pode
verificar no trecho que segue:
"Parece-lhe que o que se deu comigo em 1860, pode entrar
numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de
divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias,
se não for menos; estou desenganado. Olhe, eu podia mesmo contar-lhes minha
vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso
tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo
assemelha-se à lamparina de madrugada (...) Não tarde o sol do outro dia, um
sol dos diabos, impenetrável como a vida. Pediu-me um documento humano, ei-lo
aqui".
O Enfermeiro
é um típico relato machadiano. Humano, porém irônico e distanciado, trabalha
com a imperfeição ética das personagens que são, claro, representantes típicos
da espécie. O ceticismo de Machado levava-o a avaliar objetivamente a condição
moral de seus semelhantes. Podemos notar que, após a morte do coronel
Felisberto Procópio sentia-se culpado, mas com o passar do tempo a culpa foi
cada vez ficando menor aos seus olhos.
O homem é mais uma vez retratado por Machado como um
ser corrompido, egoísta, ingrato, oportunista e preso às forças malignas. Tais
características podem ser observadas tanto em Procópio quanto no Coronel
Felisberto. Esse pessimismo Machadiano em retratar a humanidade evidencia uma
certa "má vontade" do autor em julgar o ser humano e a vida de uma maneira
geral. Isto pode ser bem percebido no trecho abaixo:
"(...) Era homem insuportável, estúrdio,
exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros
que remédios. A dous deles quebrou a cara. (...) Se fosse só rabugento, vá; mas
ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. (...) Já
por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer
os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e
aversão".
Outro
dado importante a destacar é a tematização da morte, a qual está vinculada, ao
mesmo tempo, à decomposição moral – se julgarmos que foi o enfermeiro o
causador de tal fato – e a decomposição carnal – se considerarmos a doença como
causadora do falecimento do coronel. Esse teor dramático dado ao contemporâneo
está relacionado à tragédia, a qual Machado acreditava ser o tema central da
vida. Para ele, os melhores momentos da arte concentram-se na visão trágica da
existência humana, como se pode observar nessa passagem:
"Quando percebi que o doente expirava, recuei
aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para
chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei
à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso
mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um
delírio vago e estúpido. (...) digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes
que me bradavam: assassino! Assassino!".
Durante
a leitura, há uma mudança gigantesca não apenas nos perfis psicológicos das
personagens como também em nossas próprias convicções iniciais. O enfermeiro
passa de vítima da rudeza do Coronel à responsável pela morte do mesmo. O
Coronel, de vilão e ingrato passa a ser visto como uma pessoa com um imenso
sentimento de gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda a sua fortuna.
Logo, há um deslocamento de um esquema maniqueísta, onde se acredita que
existam pessoas boas e pessoas ruins. Machado nos quer mostrar, portanto, que
ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa parecer. Os trechos que seguem
ilustram bem esse fato, mostrando, na figura do enfermeiro, o modo como Machado
representava esse conflito interior do ser humano entre o bem e o mal:
"Queria ver no rosto dos outros se
desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências (...)
Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma
pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:
- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. (...) Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. (...) No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas (...) na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribui-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação (...)".
- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. (...) Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. (...) No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas (...) na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribui-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação (...)".
Ao
término desse conto, algumas dúvidas insistem em nos intrigar: Qual seria a
real intenção de Procópio ao aceitar o serviço de enfermeiro? Será que ele foi
o responsável pela morte de Felisberto, ou esta foi fruto da enfermidade? E
quanto ao Coronel, será que ele era tão mau quanto parecia? Será que Felisberto
não deixou a herança para o enfermeiro somente porque não tinha para quem
deixar, ou até mesmo por simples arrependimento? E Quanto ao relato inicial de
Procópio, este não tinha um tom de arrependimento, como se ele dissesse
"Perdoe o meu pecado" - no caso, a morte do Coronel? Observe essa
passagem, extraída do relato inicial do enfermeiro:
"Adeus,
meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e
não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas (...)".
Será
isto uma possível confissão de Procópio? Observe outra passagem, extraída dos
momentos finais do texto:
"Todos
os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era
certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo".
Nesse trecho residiria a constatação da inocência de
Procópio, ou seria apenas um álibi que ele se utilizava para provar sua
inocência? Enfim, tais questionamentos são frutos de uma técnica Machadiana, a
qual se baseia em instaurar as dúvidas, ou seja, é a arte da sugestão, onde se
espera que o leitor seja co-participante do texto, completando-o.
Concluímos, com isso, que Procópio –o enfermeiro-
tinha uma aspecto de submissão ao coronel. Já o coronel Felisberto utilizava-se
de autoritarismo. Procópio faz um flash-back dos dias em que trabalhou como
enfermeiro, fato que acontecera entre os anos de 1859 e 1860.
E como todo o conto Machadiano, ele coloca na mão do
leitor a tarefa de julgar, decidir, como lhe bem entender, fato que se dá no
trecho citado a seguir:
"... perdoe-me
o que lhe parecer mau.”
Análise da narrativa:
Personagens: redondo –físico.
Protagonista: o enfermeiro
Antagonista: o coronel Felisberto
Enredo (narrativa): psicológico.
Tempo: psicológico.
Espaço: Casa do coronel Felisberto
numa vila do interior.
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