Capitu: traidora ou traída?
Narrado
em 1º pessoa por um narrador-personagem, que se coloca como escritor, a
história de Dom Casmurro tem como
primeira chave para tentarmos nos aproximar de seu enigma a própria figura
deste que ao mesmo tempo a vive e relata. Assim, para a crítica tradicional, há
um relacionamento paradoxal com Escobar, que sendo amigo era também um fantasma
na vida conjugal, pois Bentinho acreditava que ele era o amante de Capitu. Acredita
no sentimento antagônico em relação ao filho Ezequiel, por sua suposta
semelhança com Escobar. Assim, a questão do adultério é muito forte, além de
ser o único detalhe estudado. Por conseguinte, a tradição só aborda a temática
da traição.
Por
outro lado, é notado, além desta visão outras mais abrangentes, ao qual diz que
Machado nos mostra – sob a agitação sentimental do primeiro plano, a presença
de interesses sociais relacionados à organização e à crise da ordem patriarcal
– um universo bolorento e recalcado onde vivia Dona Glória, com seus viúvos,
agregado e escravos, onde a energia e a liberdade de opinião da mocinha moderna
e pobre, atrevida e irreverente, lúcida e atuante, tornam-se intoleráveis. Além
dos ciúmes do menino rico, de família decadente, do bacharel típico do Segundo
Reinado, que condensam uma problemática social ampla, por trás daquele que
difama e destrói a amada. Sob a visão de críticos como Gledson, ao qual defende que o
romance se insere no âmbito do realismo, com a intenção de revelar, através da
ficção, a verdadeira natureza da sociedade que está retratando. Outros, assim como
Roberto Schwarz, relatam a questão da política, liberalismo e o agregado como
linhas a serem estudadas em Dom Casmurro,
Bem diferente do que diz a tradição. Mencionam a figura de Capitu, não como
traidora, mas sim de uma mulher que queria ser mais do que uma simples dona de
casa, ser um sujeito.
De tal
forma, ao falarmos de Capitu podemos fazer um gênesis de sua vida – no contexto
social. Aquela, ao qual era uma simples vizinha pobre de Bentinho e que se
tornou a sua esposa, rompendo, aparentemente, com os preconceitos. Esta mesmo
Capitu, que ganhou a amizade de D. Glória e de toda a família, conquistara
também o coração de Bento Santiago e tornou-se rica. Para a sociedade, jamais
um homem de posse e nome se conformaria em se casar com alguém de inferior
nível social, mas ele o fez. Aparentemente, eram pessoas boas e não iguais as
outras que formavam a sociedade daquela época.
Mas, a
partir do momento que a mesma Capitu começa a investir, querer crescer, ser
alguém, todo aquele amor, nutrido por Bentinho, desaparece completamente.
Revela-se ser um outro homem, este mal e obstinada a destruir a quem dizia
tanto amar. Tal dúvida começa a partir do capítulo 106, Dez libras esterlinas, onde a mesma relata conseguir juntar
dinheiro graças às dicas de Escobar. Nesta época a mulher não podia se meter em
negócios e tal motivo enfureceu Bentinho, pois Capitu estava fazendo o que
jamais poderia fazer. Daí então as invejas, por parte dele, só tende a aumentar
até que, após a morte do amigo desfaz o casamento – mas tudo às escondidas,
pois não gostaria de denegrir sua imagem perante a sociedade ao se divorciar.
Conclui-se que, o
conflito do casamento começou a partir do desejo de Capitu em ser autônoma. A
saída encontrada foi o
do adultério por parte da esposa com o amigo.
Entretanto,
pode-se analisar o contexto social em que
se instaura o conflito, segundo as idéias do texto "AS IDÉIAS FORA DO
LUGAR", ao exemplificar com José Dias, agregado de Bentinho, a questão da
sociedade do favor. Assim, segundo Roberto
Schwarz, o homem livre tinha acesso à vida
por meio do favor e definia a sua condição de dependente de quem possuía a
terra, essa relação determinou uma das grandes classes da sociedade brasileira.
De igual forma era a condição de José Dia – vivia de favor – e Bentinho –
possuidor de terra. Por conseguinte, o desenvolvimento da vida ideológica
deu-se propriamente entre estas duas classes (latifundiário e homem livre):
eles relacionavam-se por meio do favor,
que nada mais era que a manifestação de uma relação
produtiva de base assegurada pela força. O favor submete a auto-estima e a
estima ao interesse material em uma forma
fluida, ele pratica a dependência da pessoa, difunde a cultura interessada
e os serviços pessoais. No romance, fica-nos claro a dependência financeira do
agregado no latifundiário, onde José Dias tenta convencer Bentinho a ir à
Europa, pois só desta forma poderia, também, ir.
Por fim, surge na segunda parte do romance,
um Bentinho manipulador, sendo seu ponto de
vista o que domina tudo na narrativa. Até mesmo os demais personagens passam de
projeções de sua alma. São lembranças do seu passado, que vão ressurgindo do
subsolo da memória à medida que ele procura a reconciliação em si mesmo. Ele
mente, distorce, dissimula e confunde o leitor com quem conversa ao longo da
narração. Tenta, assim, convencer que fora traído.
Por
conseguinte, podemos afirmar que a
acusação de adultério por Bentinho serviu para justificar sua recusa por Capitu
tentar se tornar um sujeito, pois ele jamais aceitaria sua esposa ser um
sujeito. Aquela que fora pobre vencer e se tornar mais do que ele jamais seria,
era demais para um invejoso, obcecado, ciumento, dissimulado, tímido
“filhinho de mamãe” que imaginava coisas, para seu próprio deleite. Com isso,
quem traiu foi Bentinho, não Capitu – pois esta só queria ser alguém, além de
esposa e mãe. Bentinho a invejava e ele mesmo relatou que esta era mais homem
do que ele jamais seria. Está ai a prova de que não houve traição, mas sim,
pura inveja do que Capitu representava – uma pessoa decidida, determinada e,
acima de tudo, corajosa.
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