Psicanálise em debate: A IMPORTÂNCIA DA CULPA EM DOM CASMURRO, de Machado de Assis


DOM CASMURRO é justificadamente um dos livros mais elogiados de Machado de Assis, fazendo parte de sua trilogia de ouro, juntamente com MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS e QUINCAS BORBA.
Por muito tempo, os comentários sobre esse livro se centravam na personagem Capitu, mulher de Bento Santiago, o solitário narrador que relata suas dúvidas quanto a fidelidade de sua amada.
Capitu, a de “olhos de ressaca”, aquela que tem “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, foi submetida a inúmeros processos nos quais os críticos avaliavam sua culpa ou inocência.
Mais recentemente, o enfoque mudou. Afastou-se da suposta traição de Capitu e incidiu sobre os ciúmes de Bentinho, na medida em que se atentou para o fato de que o que é apresentado é o relato deste último, necessariamente enviesado e muito diferente do que seria o de um narrador onisciente, que nos contaria com imparcialidade a verdade dos acontecimentos. Isso proporcionou uma reviravolta, retirando Capitu do centro das atenções e ali colocando Bento Santiago, o próprio Dom Casmurro.
Mesmo assim, visar a suposta traição de Capitu ou os ciúmes de Bentinho, é praticar uma redução empobrecedora da saborosa e delicada trama construída por Machado de Assis; ignorar-se-ia a extraordinária acuidade psicológica e os inúmeros traços de humor advindos da forma irônica com que ele nos apresenta sua comédia de costumes do Brasil Imperial.
Seria realizar uma leitura rasteira que menospreza a complexidade da estratégia machadiana. Como diz Faoro:
“O escritor, para evidenciar seu jogo, coloca-se diante do leitor, em caminhos ora opostos, ora cruzados. O diálogo esconde o narrador armado de florete, não sem entremostrá-lo na manga do casaco. O confronto das duas entidades - escritor e leitor - tem caráter antitético, às vezes alternando-se como duas vozes num coro, desdobrando-se, no momento de clímax, na oposição competitiva, agonal, quando os atores acentuam sua individualidade, rompendo o consenso de vozes. (...) Nesse combate, onde o sério se esconde no jogo, a seriedade na burla, há um impasse. O autor engana o leitor, zombando de sua credulidade. Mas o leitor adverte que está sendo enganado e revida ao autor com a desconfiança. (...) O escritor mostra o enlevo dos amores de Bentinho e Capitu e insinua o adultério. O espectador afoito, com a prova concludente da semelhança do filho ao comborço, exulta. Mas, será que ele viu tudo, ou, embaraçado pela antítese do ataque e defesa, não criou a sua verdade, que nem sempre é o confronto de duas proposições falsas?”. (grifos do autor)
Porém é compreensível tal ênfase na traição de Capitu por ser ela o ponto de inflexão da trama.
Embora DOM CASMURRO seja uma obra muito conhecida, para que a argumentação que desenvolverei em seguida fique clara, farei um breve resumo do enredo.
A obra tem 148 capítulos. Até o capítulo 50, vemos o velho e solitário Bento Santiago relembrando sua meninice na rua de Matacavalos e a amizade com sua vizinha Capitu; a evolução desse afeto para uma correspondida paixão; o desespero de ambos frente a disposição de Dona Glória, mãe de Bentinho, piedosa viúva que planeja uma carreira eclesiástica para o filho, como pagamento de uma antiga promessa; seu desolado ingresso no seminário.
Entre os capítulos 50 e o 97, acompanhamos as escaramuças de Bentinho e Capitu contra os planos maternos, nas quais contam com a ajuda do impagável agregado José Dias e vemos a entrada em cena de Escobar, um seminarista com quem Bentinho faz grande amizade e que passa a participar dos sobressaltos do casal apaixonado. É ele quem descobre uma saída para o impasse da promessa materna - propõe que Dona Glória mande para o seminário um outro menino, um órfão qualquer que substitua Bentinho na obrigação da carreira sacerdotal.
O curioso capitulo 97 tem uma conotação metanarrativa. Nele, Bentinho faz considerações sobre a maneira como constrói seu relato. Se até aqui acompanhou de perto uma determinada época de sua vida, agora muda de ritmo, trata o tempo de outra maneira:
“Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capitulo sobre capitulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já essa página vale por uns meses, outras valerão por anos e assim chegaremos ao fim”.
Efetivamente, a ação logo se precipita. Escapando do seminário, Bentinho vai para São Paulo onde se forma em advocacia. Ao voltar, casa-se com Capitu, com pleno assentimento da mãe. Escobar casa-se com Sancha, amiga íntima de Capitu. Se, em várias ocasiões, Bentinho se mostrara ciumento e possessivo, nada parecia extraordinário ou despropositado, incompatível com os ardores de uma primeira e grande paixão. No correr da ação, Bentinho dera amplas informações sobre a inteligência e habilidade de Capitu, sua capacidade de lutar por seus interesses, sua força, sua determinação, características bem diferentes de suas próprias, tão timorato e inseguro.
O casal inicialmente não tem rebentos, ao contrário de Escobar e Sancha, que geraram uma filha, Capituzinha. Dois anos depois, nasce Ezequiel, assim batizado em homenagem a Escobar, retribuição à gentileza que o casal amigo fizera, dando à filha o nome da amiga. Ezequiel é menino vivo e inteligente, capaz de imitar a todos, provocando o riso e a admiração dos circunstantes. Escobar sonha um futuro casamento de Capituzinha e Ezequiel, idéia que agrada aos dois casais.
Tudo parece ir muito bem até o capítulo 118, intitulado “A Mão de Sancha”. Numa reunião na casa de Escobar, os quatro amigos planejam uma viagem para a Europa. Por um momento, tendo Escobar se afastado da sala e Capitu entretida longe, Bentinho surpreende um olhar intenso de Sancha, o que dá vez a um diálogo cheio de insinuações eróticas e uma troca ardorosa de apertos de mãos.
Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela com Capitu, não me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. (...)
Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
Bentinho, fortemente atraído por Sancha, lembra que o agregado José Dias dizia - com sua mania de usar superlativos, “uma forma de dar monumentalidade às idéias” - que Sancha era uma senhora “deliciosíssima”.
Tão chocado fica Bentinho com tais acontecimentos, que o curtíssimo capítulo seguinte, o 119, diz o seguinte:
A leitora, que é minha amiga e abriu esse livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos o abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.
No rápido capitulo 120, vemos Bentinho tentar esfriar os ardores despertados por Sancha com o estudo de autos legais e, no capítulo seguinte, o 121, somos surpreendidos com a inesperada morte de Escobar, tragado pela ressaca do mar do Flamengo. No enterro de Escobar, descrito em capítulo posterior, o 123, ao ver Capitu chorando o amigo morto, o que seria uma atitude esperada e natural transforma-se numa prova da traição de ambos para Bentinho.
Até esse momento, em nenhuma ocasião tal idéia passara explicitamente pela cabeça de Bentinho. Incomodava-o as imitações de Eliezer, que o fazia parecer com Escobar, mas não dava muita importância ao fato, pois sabia da existência de estranhas e aleatórias semelhanças entre as pessoas, haja vista - segundo o próprio viúvo - a extraordinária parecença de Capitu com a falecida mãe de Sancha.
Como lembrei acima, o livro tem 148 capítulos e já estamos no 121. Desta forma, em rápida e sumária sucessão, vamos ver Bentinho rejeitar cada vez mais o filho Ezequiel, por nele vislumbrar traços de Escobar. Manda o filho estudar na Europa e se separa de Capitu. Para manter as aparências, faz a mulher acompanhar o filho no velho continente, aonde ela morre ainda jovem. Anos depois Ezequiel vem visitar o pai, que financia sua viagem de estudos arqueológicos na Palestina, onde, vitimado por febres, também vem a falecer. Sozinho, Dom Casmurro dá por encerrado seu relato e se prepara para escrever outra coisa para preencher o tempo vazio e a solidão de sua vida, a “História dos Subúrbios do Rio de Janeiro”.
Como disse acima, muito já foi escrito sobre DOM CASMURRO. Sob o prisma da psicanálise, temos um trabalho cuidadoso, de Luis Alberto Pinheiro de Freitas. Em linhas gerais, a autor interpreta os ciúmes de Bentinho como projeção em Capitu de seu desejo homossexual frente a Escobar, desde que Bentinho, filho de viúva, não teria tido figuras masculinas fortes que possibilitassem a organização de uma identidade sexual masculina. Afinal, tivera como modelo as pouco viris imagens do agregado José Dias e do tio Cosme. Mostra-se ele passivo, submetido ao desejo de mulheres fálicas, como a mãe e Capitu. Bentinho nascera após o falecimento do primeiro filho do casal. Vinha assim colocar-se no lugar do filho morto da mãe, daí sua promessa que o assombrou durante a adolescência - a carreira religiosa, o ser padre.
Embora tais elementos sejam relevantes e configurem uma hipótese plausível, penso que detalhes importantes foram nela desconsiderados. Ao se lhes dar a devida importância, outras possibilidades interpretativas se configuram, ajudando a entender melhor os ciúmes doentios de Bentinho, que destroem sua vida amorosa e familiar, relegando-o à solitária casmurrice.
É chamativo e sintomático que as eventuais suspeitas e ciúmes esparsos apresentados por Bentinho tomem corpo e se intensifiquem exatamente no enterro de Escobar, especialmente se não esquecermos o ocorrido na noite anterior à morte do amigo. Ali Bentinho se sentira fortemente atraído por Sancha e acreditara que ela se dispunha a retribuir uma aproximação sexual.
No dia seguinte, a visão do amigo morto lhe é intolerável, pois ela o remete diretamente à idéia de que desejara traí-lo. A própria morte de Escobar lhe pareceria uma conseqüência, um efeito da fantasiada traição. Conseqüentemente, algo pelo qual é responsável.
Profundamente culpado, Bentinho se sente incapaz de lidar com esse sentimento e imediatamente o projeta em Escobar e Capitu.
Não são Bentinho e Sancha os culpados, aqueles que traíram a amizade e os respectivos cônjuges em arroubos amorosos, e, sim, Escobar e Capitu. São eles os culpados, os traidores.
O próprio título do capítulo 121, no qual descreve o enterro de Escobar, ocasião em que se deflagra sua suspeita ciumenta, intitula-se “Olhos de ressaca”, que remete ao homônimo capítulo 31, quando assim descreve os olhos da amada:
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Desta forma, sub-repticiamente Bentinho atribui a Capitu a responsabilidade da morte de Escobar, tragado pela ressaca do mar do Flamengo.
Para Bentinho é bem mais tolerável sentir ciúmes, ficar na pele do traído e enganado, do que ter de agüentar a culpa de ser o traidor, o “culpado” pela morte do amigo.
Entretanto, colocar-se como vítima da traição, ficar na posição da parte ofendida que - com toda a razão - sofreria de ciúmes, não se mostra um artifício muito eficaz para livrá-lo da culpa. O fantasma de Escobar o vem assombrar diariamente na pessoa de Eliezer.
Desta forma, tomado pela presença fantasmagórica de Escobar encarnada em Eliezer, que o persegue acusando e exigindo reparação, Bentinho tenta aplacá-lo, destruindo sua própria felicidade conjugal e recusando-se as alegrias da paternidade. Afasta-se da mulher e do filho, impondo-lhes um exílio involuntário, não antes de fazer uma tentativa falha de se suicidar ou de envenenar o filho.
Ao atribuir a Escobar a paternidade de Eliezer, ao reencontrar Escobar toda vez que vê o filho, Bentinho condensa vários sentimentos contraditórios. Por um lado, se pune com a presença de seu carrasco, que vem lembrar-lhe do crime cometido. Por outro, nega a morte de Escobar, dá-lhe a vida novamente, ressuscitando-o na figura de Eliezer, que - também por culpa - não pode reconhecer como seu filho.
Como mencionei acima, essa mudança foi anunciada por Bentinho no capítulo 119, quando, assustado com as fantasias eróticas em torno de Sancha, dirige-se diretamente à leitora amiga, pedindo-lhe que não abandone o livro por terem beirado o “abismo”. Diz: “Não faça isso querida; eu mudo o rumo”.
De fato, há uma radical mudança de rumo e é justamente essa - ao invés de ser o traidor, Bentinho passa a ser o traído. Morto Escobar, Bentinho se instala “confortavelmente” na posição de ofendido e não de ofensor.
Se lembrarmos que Escobar, num determinado momento propôs sociedade comercial a Dona Glória e que - pelo menos na opinião de prima Justina - pensara em se casar com ela, tais elementos o fazem ocupar um lugar paterno frente a Bentinho. Sua morte, conseqüentemente, reatualizaria a morte do pai, ocorrida quando tinha 7 anos. Tal acontecimento, que o colocara na posição privilegiada de objeto inconteste do amor materno, poderia ter sido vivenciado como a realização dos desejos parricidas inconscientes. A culpa daí advinda ficaria intensificada com a morte de Escobar, esse outro “pai” que “eliminava”, apossando-se de sua cobiçada mulher, Sancha, tal como antes de apossara da mãe.
Apesar de triunfar sobre o rival paterno, é abatido pela culpa, que o impede de usufruir a vitória.
A tragédia de Bentinho fica ainda mais funda, quando lembramos sua denodada luta para realizar sua vida amorosa com Capitu, fugindo da imposição materna que o condenava ao celibato religioso.
O desejo materno, justificado conscientemente pela promessa feita, poderia ser entendido como a intolerância da mãe em se separar desse filho, castrando-o e mantendo-o ao seu lado.
Inconscientemente, Bentinho sente-se culpado em relação ao pai, sobre quem triunfara edipicamente, e em relação à mãe, cujo acalentado desejo narcísico fusional ele frustrara. Por esse motivo, não se sente legitimamente autorizado a ocupar o lugar de marido e pai. Essa ilegitimidade aparece no embuste que fora realizado para que pudesse exercer sua masculinidade e futura paternidade: a negociata na qual um “órfão” qualquer fora colocado no seminário em seu lugar, como sugerira Escobar.
Poucos autores atentaram para a importância de Sancha no desenrolar da tragédia de DOM CASMURRO. Faoro, cujo cuidadoso estudo lista aqueles que considera personagens importantes de Machado, sequer a menciona. O que não ocorre com Teixeira, que, num capítulo adequadamente chamado de “Dois pormenores: antecipações freudianas”, fareja a relevância do encontro de Sancha e Bentinho nas vésperas da morte de Escobar, sem, entretanto, articulá-la conseqüentemente dentro da trama.

Santiago, Silviano - Retórica da Verossimilhança in “Uma literatura nos trópicos” - Rocco - Rio de Janeiro, 2000
Faoro, Raymundo - Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio - Editora Globo - São Paulo, 2001 - p.438-9
Machado de Assis - Dom Casmurro - Abril Cultural, São Paulo, 1971, p.297
Machado de Assis, op. cit. , p. 320/1
Machado de Assis, op. cit., p.322
Pinheiro de Freitas, Luis Alberto - Freud e Machado de Assis - uma interseção entre psicanálise e literatura - Mauad Editora - Rio de Janeiro - 2001
Machado de Assis, op. cit., p. 219
Op.cit.
Teixeira, Ivan - Apresentação de Machado de Assis - Livraria Martins Fontes Editora - São Paulo, 1987, p.129


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