Análise interpretativa do romance: Alice no País das Maravilhas (Coerência)
Resumo: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, é um romance inglês moderno extremamente complexo que propõe as mais variadas interpretações por abordar em seu contexto assuntos de diferentes temáticas. Através deste artigo, por meio de uma pesquisa bibliográfica, pretende-se fazer uma análise de caráter interpretativo do romance Alice no País das Maravilhas.
1. Considerações iniciais
Alice no país das maravilhas é um dos livros mais editados da literatura moderna e influenciou vários grandes escritores, como Jorge Luis Borges, Cortazar, Maria Clara Machado e Guimarães Rosa. Um romance extremamente complexo que propõe as mais variadas interpretações por abordar em seu contexto assuntos de diferentes temáticas.
Os dois romances de Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwidge Dodson), Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, publicados em 1865 e 1872, são extremamente intrigantes e capazes de mexer muito com a imaginação de seus leitores, porém este artigo detém-se apenas na análise do primeiro.
Os elementos típicos dos contos de fada, animais que falam, reis e rainhas, mudanças de tamanho em um passe de mágica, personagens enigmáticos que aparecem e desaparecem de uma hora para outra, além do fato de a história se passar dentro de um sonho, torna tudo muito complexo e curioso.
Partindo-se dos referidos pressupostos, desenvolvemos uma análise interpretativa da obra Alice no país das maravilhas, buscando compreender um pouco melhor a sua coerência.
2. O autor e sua obra
Charles Lutwidge Dodgson (mais conhecido como Lewis Carroll) nasceu em 27 de janeiro de 1832, em Daresbury, Inglaterra e morreu em Guidford, Inglaterra, em 14 de janeiro de 1898. Filho de um pastor anglicano, Lewis Carroll tinha 10 irmãos e cresceu num ambiente onde aprendeu a contar histórias, cuidar e distrair crianças.
Apaixonado por matemática e fotografia, foi nomeado professor de matemática em Oxford em 1861. Como fotógrafo amador, fotografava invariavelmente meninas entre 8 e 12 anos de idade. Tornou-se famoso por seus dois livros, Alice no país das maravilhas e Alice no país do espelho, que tiveram como inspiradora Alice Liddell, de apenas dez anos, por quem ele tinha uma paixão platônica. Carroll nunca assumiu sua paixão por meninas, que ficou registrada através de várias fotos de nu infantil feitas por ele.
Não se deve afirmar com certeza que os livros Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho, sejam necessariamente livros infantis. “Pois não há nada por trás dos enredos e personagens desses dois livros que não esteja rigorosamente referenciado, seja através de dados da própria existência de Carroll, seja através de inúmeras alusões literárias, científicas, lógico-matemáticas, etc.” (CARROLL, 1980, p. 7).
3. Origem do livro
Em 4 de julho de 1862, um barco a remo transportava o reverendo Charles Lutwidge Dodgson numa excursão pelo rio Tâmisa. Junto a ele, além do amigo Robinson Duckworth, estavam as três irmãs Liddell: Lorina Charlotte, de 13 anos; Alice Pleasence, de 10 anos; e Edith, de 8 anos. Cada uma recebeu um apelido, ao longo da viagem, respeitando a ordem de nascimento. Assim, Lorina foi denominada “Prima”, Alice “Secunda” e Edith “Tertia”. O evento não era algo incomum na vida daquelas pessoas, o reverendo acostumara- se a levar as irmãs Liddell em passeios pelo rio, alternando conversas e contos de fadas inventados em cada ocasião, geralmente esquecidos nos momentos seguintes. Porém, Prima,
Secunda e Tertia foram eternizadas num poema, que alude explicitamente àquela sexta-feira, naquela tarde de verão. E a história que povoou a imaginação das três meninas foi anotada, escrita e reescrita, depois publicada pelo reverendo em 1865, tornando-se um dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos. O poema e a história foram dedicados a Alice Pleasence Liddell. Assim, Alice no país das maravilhas e depois Alice através do espelho alçaram o pseudônimo Lewis Carroll à posição de destaque na história da literatura marcada pelo pioneirismo no tratamento das situações e também pelo uso até certo ponto incomum do recurso do nonsense (termo inglês que indica ausência de sentido) para o público infantil.
O nonsense de Carroll continha um elemento extra na formação do texto: a matemática. A obra de Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica, nos quais os capítulos só terminam quando as proposições se esgotam. Carroll usou de seus conhecimentos matemáticos e lógicos para construir proposições em Alice no País das Maravilhas, sendo muitas vezes o significado particular da frase superado pela forma, sugerindo brincadeiras comuns em sua época.
4. Composição do romance
Os episódios que compõem uma narrativa, localizados no tempo e no espaço desejados pelo escritor, dependem de algum recurso de ligação para garantir a sua coerência interna. Este recurso pode ser estabelecido através do ritmo, do narrador, de um limite de tempo ou até mesmo de um personagem, entre outras possibilidades.
A análise do sumário da obra, observando os títulos dos capítulos, permite ver uma colagem de histórias, casos curtos que poderiam existir independentemente, se não fosse a intenção do autor escrever um verdadeiro conto de fadas, tornando a viagem pelo país das maravilhas um sonho de Alice, e fazendo a correspondência ao episódio inicial em que ela lê um livro enfadonho antes de cair no sono. A Lagoa de Lágrimas (capítulo 2), Um Chá Maluco (capítulo 7) e O Campo de Croqué da Rainha (capítulo 8) são capítulos que remetem o leitor a cenas muito visuais, seja pela descrição nada usual dos acontecimentos ou pelo inusitado dos diálogos.
A concordância entre o início e o final aparece como uma prova de coerência na construção da narrativa, pois os leitores não exigem uma lógica total dos acontecimentos dentro do romance, uma vez que se trata do enredo de um sonho, universo onde as coisas mais incomuns são aceitas como naturais.
5. As diversas alusões dentro da obra
Vários personagens e situações de Alice no país das maravilhas tiveram como inspiração o cotidiano de Lewis Carroll e a comunidade onde viveu. A personagem Alice foi inspirada em Alice Liddell, filha de Liddell, amigo de Carroll. Apesar de a menina e a personagem terem o mesmo nome, ambas eram muito diferentes: Alice Liddell era morena, comum e insípida, ao contrário da Alice de Lewis, que era loira, esperta e agitada. As irmãs Liddell eram muito afeiçoadas aos dois gatos malhados da família, Dinah e Villikens.
O frasco de remédio vitoriano era arrolhado, com um rótulo de papel amarrado no gargalo assim como a garrafa com o líquido que Alice toma para encolher em sua primeira mudança de tamanho.
Uma chave de ouro que destrancava portas misteriosas era um objeto comum na literatura vitoriana. A portinha para um jardim secreto era para Carroll uma metáfora de eventos que poderiam ter acontecido se tivesse aberto certas “portas”. As doze mudanças de tamanho sofridas por Alice ao longo da história poderiam estar ligadas ao desejo dele de que Alice Liddell fosse adulta para que pudesse se casar com ela. O poema da carta usada como prova pelo Coelho Branco no julgamento é inspirado pela canção Alice Gray, que conta à história do amor não correspondido de um homem por uma moça chamada Alice.
Carroll pode ter pretendido que a “corrida em comitê” simbolizasse o fato de que os membros de comitês políticos geralmente correm muito em círculos, sem chegar a lugar algum, pois todos almejam um mesmo prêmio político. O dedal tomado de Alice e depois devolvido a ela como prêmio pela corrida, pode simbolizar o modo como os governantes tomam dinheiro do bolso dos cidadãos e depois devolvem na forma de projetos políticos.
Mary Ann, na época de Carroll, era um eufemismo britânico para criada. O coelho Branco chama Alice assim em um momento no qual dá ordens a ela. Ele está sempre procurando por suas luvas, peças tão importantes para Lewis quanto para o Coelho, pois em todas as estações do ano o escritor sempre usava um par de luvas de algodão cinzentas ou pretas.
No capítulo “Conselhos de uma Lagarta”, a lagarta lê o pensamento de Alice. “Carroll não acreditava em espiritualismo, mas acreditava na realidade da percepção extrasensorial e no poder da mente mover ou deformar objetos inanimados.”
A Lagarta fora inspirada nos professores que davam conselhos na Universidade de Oxford, onde Lewis estudou.
Em toda a história de Alice são encontrados 24 poemas, entre os quais 10 são paródias de poemas e canções inglesas da época de Lewis Carroll. “Os poemas e os versos que Alice recita, e que parecem não ter sentido nenhum, são sátiras aos poemas enfadonhos que as crianças inglesas daquela época tinham que saber de cor.” (www.educ.fc.ul.pt/docentes/ opombo/seminario/alice/comosurgiu.htm). A posição de Alice, de mãos unidas, ao fazer recitações indica que era exigido das crianças da época saber as lições de cor.
O autor do romance adorava crianças, mas detestava meninos. “Certamente não foi sem malícia que Carroll transformou um bebê do sexo masculino num porco, pois não tinha menininhos em alta conta.” (GARDINER, in: CARROLL, 2002, p. 61).
A nogueira onde aparece o Gato de Cheshire ainda existe nos dias de hoje, no jardim do Colégio de Deanery. O Gato de Cheshire refere-se aos queijos do condado de Cheshire
onde Carroll nasceu) que tinha a forma de um gato sorridente. Ao partir o queijo na forma de gato, a tendência seria começar pela calda até que finalmente só restasse na travessa a cabeça sorridente, o que nos remete ao episódio no qual o gato desaparece a começar pela cauda e termina com o sorriso.
O dia do chá maluco não é uma data qualquer, é o dia do aniversário de Alice Liddell, 4 de maio. Ninguém diria a uma menina vitoriana que seu cabelo estava comprido demais. A observação “seu cabelo está precisando de um corte” dita pelo Chapeleiro Louco, na verdade, era uma frase muito ouvida por Carroll, pois este usava os cabelos mais longos do que era costume. A história que o caxinguelê conta sobre 3 irmãs que vivem em um poço de mel (Elsie, Lacie e Tillie), refere-se às 3 irmãs Liddell: Lorina, Edite e Alice. A parte na qual a Lebre de Março e o Chapeleiro Louco tentam enfiar o Caxinguelê no bule de chá pode estar relacionada ao fato de que crianças vitorianas costumavam ter ratinhos como bichos de estimação e conservavam-nos dentro de bules cheios de capim ou feno.
A Lebre de Março refere-se ao mês do cio das lebres; o Chapeleiro é louco por causa de uma substância alucinógena usada na fabricação de chapéus; o Leirão dorme muito por ser um animal que hiberna no inverno e a Falsa Tartaruga refere-se à sopa de falsa tartaruga, que na verdade é feita com carne de vitela. Na catedral, onde o pai de Lewis era reverendo, existe talhada em madeira a imagem do grifo que inspirou o Grifo, amigo da Falsa Tartaruga. “O grifo é um monstro fabuloso com cabeça e asas de águia e a parte inferior do corpo de leão.” (GARDINER, in: CARROLL, 2002, p. 91).
“A “Quadrilha da Lagosta” pode ter sido pensada como uma brincadeira com a “Lancers Quadrille”, dança para 6 a 8 pares que era imensamente popular nos salões de baile ingleses na época em que Carroll escreveu seus livros de Alice.” (idem, 2002, p. 97).
Carroll dedicava muito tempo à invenção de maneiras inusitadas de jogar jogos conhecidos, e talvez por isso, o jogo de croqué da Rainha possuísse elementos vivos. Camomila mera um medicamento extremamente amargo, muito usado na Inglaterra Vitoriana, e era extraído da planta de mesmo nome, por isso, Alice afirma que a camomila torna as pessoas amargas.
Durante uma conversa com a duquesa, Alice fica indecisa entre classificar mostarda como animal, mineral ou vegetal. Trata-se de uma referência ao popular jogo de salão vitoriano “animal, vegetal, mineral”, em que os jogadores tentavam adivinhar o que alguém tinha em mente. As primeiras perguntas feitas eram tradicionalmente: É um animal? É um vegetal? É um mineral? As respostas tinham de ser sim ou não, e o objetivo era adivinhar corretamente em 20 perguntas ou menos.
Devido às semelhanças no comprimento dos nomes, e às posições das vogais, consoantes e letras duplas no último nome, acredita-se que Charles tenha se inspirado na formação do nome de Alice Liddell para criar seu pseudônimo Lewis Carroll.
6. Alice e o tamanho
6.1 O tamanho e o caminho para a maturidade
Alice no país das maravilhas é a narrativa do sonho de uma garotinha. Como é comum em todos os sonhos, as regras da realidade são quebradas, e isso é analisado pela própria personagem como em um jogo. A garotinha precisa entender e resolver o jogo, antes que sua irmã a acorde e a traga de volta ao mundo real e normal.
Alice é uma obra que permite várias interpretações. Uma delas é a de que as mudanças, conflitos e aprendizados da adolescência podem estar representados na obra. Alice entra na aventura sem pensar em nada, de repente, como se entra na adolescência. A questão do tamanho nos lembra que a adolescência está presente em todos os episódios da história:
“Alice está sempre crescendo e diminuindo dependendo da situação e isso certas vezes é conveniente ou não para ela.” No primeiro capítulo, Alice reduz de tamanho e parece se tornar insignificante. Essa transformação faz com que ela tenha medo de encolher até desaparecer. Em alguns episódios, Alice cresce de forma desenfreada. O adolescente se sente insatisfeito, ao perceber que
crescer traz consigo inúmeras responsabilidades.
Em várias circunstâncias o tamanho representa novas possibilidades. Pequena, Alice pode entrar no jardim, mas grande, pode pegar a chave. Grande, sente-se mais confiante no julgamento no final do livro.
Na passagem em que o pescoço de Alice cresce, sua capacidade de observação se torna mais ampla. Depois de experiências vividas na adolescência passamos a ter uma nova visão do mundo. Alice considera o país das maravilhas mais divertido, mas sente saudades do mundo real. O adolescente adora as novas possibilidades dessa fase, mas sente saudade das facilidades da vida enquanto criança.
No país das maravilhas, Alice sente que pode usar a mágica como recurso para tornar-se invencível. Ao afirmar que quando for adulta vai escrever um conto de fadas, revela o desejo de controlar tudo que acontece no mundo a sua volta.
Quando Alice fala sobre a dúvida de quem realmente é, no diálogo com a cigarra, a personagem demonstra um estado confuso típico da adolescência diante da rapidez com que as mudanças acontecem.
Ao final do livro, Alice recupera seu tamanho normal, porém a maturidade vinda das experiências vividas ao longo da história a investe de uma grande coragem para enfrentar o julgamento. Quando Alice acorda, sua irmã pensa se ao crescer ela conservará o coração simples e amoroso da infância. Lembra alguém que passou pela adolescência e se lembra dela com saudades. Nesse momento, a irmã de Alice percebe que ela despertou do sonho muito mais madura.
6.2 Alice e o problema do tamanho
As mudanças de tamanho mexem com o psicológico da personagem, levando-a a explorar suas capacidades, enquanto impõe novas circunstâncias a cada capítulo, fazendo o romance progredir.
Tome-se por exemplo um dos episódios iniciais em que Alice está num grande salão e identifica uma porta pequena na parede, antes escondida por uma cortina. A menina então encontra uma chave minúscula, sobre a mesa de vidro, e abre a portinha, revelando um belo jardim. Sua intenção é chegar àquele novo lugar. E a necessidade de Carroll é avançar no romance, criando novas peripécias para a protagonista. A transformação do tamanho aparece, pois, como uma solução para o desejo de Alice (e de Carroll).
O problema do tamanho lida com o crescimento e os obstáculos encontrados no caminho para a maturidade. A personagem busca se superar diante de cada obstáculo desenvolvendo a postura de uma heroína, e nem mesmo a sua constante crise de identidade a impede de continuar questionando e desejando mudar seu tamanho para ultrapassar portas e adentrar recintos novos. A última mudança acontece espontaneamente, talvez porque Alice estivesse prestes a voltar à realidade.
7. Teorias científicas presentes na obra
Na época de Carroll, era uma curiosidade comum desejar saber o que aconteceria se alguém caísse em um buraco que passe pelo centro da terra. Estudando sobre a travessia até o centro da terra feita pela toca do coelho, percebe-se a referência feita à teoria de Galileu sobre a relação entre velocidade e aceleração. Em alguns trechos nos quais ocorre queda livre, ele teria, de certa forma, antecipado a “experiência de pensamento” em que Einstein usou um elevador imaginário em queda para explicar certos aspectos da teoria da relatividade.
As mudanças de tamanho sofridas por Alice também fazem alusão ao princípio do telescópio, o qual fascinava Carroll imensamente. Estudiosos da obra de Lewis, usando a teoria da relatividade, comparam o chá maluco, em que são sempre 6 horas, com a porção do modelo do cosmo de De Sitter, em que o tempo permanece eternamente imóvel.
8. Referências histórico-lingüísticas e socioculturais
As histórias de Carroll possuem referências histórico-lingüísticas, e muitas vezes, é necessária a decodificação para uma compreensão perfeita de sentido do que é dito.
Carroll usou elementos típicos dos contos de fadas para chamar a atenção das crianças, como animais que falam e a presença de reis e rainhas, além da cronologia indefinida.
Porém, as histórias de Alice não podem ser consideradas contos de fadas, pois abordam questões históricas em suas narrativas, como por exemplo, críticas à sociedade inglesa do período vitoriano.
A obra reproduz vários aspectos comuns à cultura inglesa da época vitoriana. Até mesmo na Inglaterra é provável que o leitor de Alice não seja capaz de compreender todos os significados propostos por Carroll, considerando os costumes do século XIX, as menções ao folclore regional, as piadas que só eram entendidas em Oxford e as alusões à sociedade daquele período. A inversão do sentido presente na obra pode ser caracterizada como crítica, considerando-se a Inglaterra de meados do século XIX como um dos países onde mais se afirmava a racionalidade, ou ao menos um princípio lógico para justificar tudo na sociedade, até mesmo questões difíceis de serem justificadas, como os privilégios e a miséria.
9. Considerações Finais
Para uma interpretação mais satisfatória do romance Alice no País da Maravilhas, foi necessária uma pesquisa sobre os diferentes temas abordados de forma direta e indireta dentro da obra, pois o autor Lewis Carroll utilizou-se de vários fatores de seu cotidiano como também de conhecimentos matemáticos e científicos para criar os episódios que compõem o livro.
A composição da história criada durante um passeio de Carroll e das irmãs Liddell pelo rio Tâmisa sofreu influência das várias lembranças da infância do autor no Condado de Cheshire e também dos conhecimentos por assuntos que muito interessavam a ele, como a matemática e as diversas teorias científicas, que determinaram todo o desenvolvimento da trama de Alice, principalmente no que diz respeito à ligação dos capítulos pelas inúmeras mudanças de tamanho sofridas pela personagem principal.
As críticas e alusões a costumes da sociedade inglesa do período vitoriano também tiveram imensa importância na construção do romance, o que de certa forma, torna a compreensão para leitores externos a este contexto um tanto complicada, pois o livro traz informações em que a compreenção ficaria limitada, até mesmo, a determinadas regiões da Inglaterra.
Assim, fizemos uma leitura do romance tão profunda quanto nos foi possível com o objetivo de compreender um pouco melhor o enredo do mesmo, desvendando o universo dessa trama que mistura “sonho” e “realidade”, seduzindo os leitores através do fantástico.
10. Outras Informações:
A essa altura, Alice começou a ficar com muito sono, e começou a dizer coisas, como se estivesse sonhando:
- Será que gatos comem morcegos? Será que gatos comem morcegos? E às vezes:
-Será que morcegos comem gatos?
Aqui temos um dos múltiplos exemplos de como Lewis Carroll propõe uma inversão/questionamento de valores - tanto lógicos quanto semânticos -, assim como de conceitos num âmbito geral. Nesse caso em específico, a relatividade conferida pelos pontos de vista e pela indagação perante o desconhecido - afinal como saber quem come quem, se ainda não nos deparamos com a situação concreta?
Também se encaixaria perfeitamente aqui o impasse que Alice tem com um rato, ao falar de sua gatinha Dinah: ele morre de medo de gatos, obviamente, e sente-se ofendido, retrucando com uma provocativa: se ela estivesse no lugar dele, também gostaria de gatos? Isso é empatia, algo que anda se perdendo muito atualmente.
Alice constantemente se questiona acerca do mundo, sobretudo das concepções vigentes e da lógica, impulsionada pelas situações surreais em que se vê presa constantemente. A aparente ausência de lógica do mundo subterrâneo em que ela cai definiria apenas um universo paralelo onde o que é impossível no nosso tornar-se-ia possível (e cujos fatos não seguem uma estrutura bem definida de causa-e-efeito, onde tudo parece ocorrer por acaso ou consequências dos atos mais absurdos e inverossímeis) ou denunciariam a verdadeira lógica subjacente do mundo, que geralmente não se percebe pela alienação e pela insensibilidade? Talvez não chegue a essa amplitude, mas certamente Alice no País das Maravilhas propõe uma revisão conceitual do mundo e se prestarmos atenção nas sutilezas, a perceber que tal lógica está sim correta, se vista sob outro ângulo - há passagens diversas no livro em que Alice começa a desenvolver novos olhares -, sob outro ponto de vista, ou que mesmo em algumas situações não se deve procurar uma lógica convencional, pois são definidas por outras leis, e o acaso não deve ser subestimado.
Outro aspecto é que muitas vezes em Alice o transtorno provém mais da linguagem, repleta de contradições, trocadilhos e outras figuras de linguagem: o Carrol é mestre em (re)inventar/adaptar palavras. Atentemos bem para a origem das palavras e para o processo de estilismo linguístico, que muitas coisas tornam-se perfeitamente inteligíveis, grande exemplo é o episódio dos discursos melancólicos da Tartaruga Falsa em parceria com o Grifo, recheada de vocábulos inventados.
Há diversas passagens em que Alice se acerca de uma falta de coerência em atitudes dos personagens, e que simbolizariam a própria incoerência de tantos atos do ser humano. Frequentemente agimos como loucos, daí a afirmação do Gato de Cheshire de que "somos todos loucos" e de que se Alice não a fosse, não teria parado no seu mundo. E a loucura é relativa, depende de padrões de comportamento vigentes, estabelecidos como os "corretos" ou convencionais de uma sociedade, tendo como eixo de sustentação um certo modelo. O Gato de Cheshire aborda essa relatividade - embora incosciente dela - de que é louco porque, ao contrário do cão, abana o rabo quando está irritado e rosna (no seu caso, particularmente, ronrona) quando está alegre; mas aqui o modelo é o cão, e estamos falando de um gato, com sua essência inerente a um gato, e individualidade que deve ser respeitada. E sabemos como o conceito relativo e mutável de loucura no percurso histórico fora - e sob certas circunstâncias e em alguns países ainda continua sendo - instrumento de repressão.
1. A aparente ausência de lógica de tantos fatos, na verdade "obedientes" a uma lógica que foge ao convencional do qual estamos acostumados, ou determinados pelo acaso.
2. A descoberta da lógica sutil e não-convencional que permeia tantas situações surreais.
3. O caráter humano, relativizador ou absolutista de acordo com as circunstâncias. A obsessão de muitos em extrair uma lição moral uniforme de todas as situações, ideal encarnado pela Duquesa, em detrimento da verdade múltipla e potencialmente reinterpretativa que podemos apreender de qualquer experiência; a moral ambígua.
4. A ressignificação do discurso e o discurso através de símbolos e de alegorias.
5. A entrada na adolescência, com todos os questionamentos recorrentes, crises de identidade e instabilidade emocional que ela representa, representada por Alice (ela frequentemente se vê presa dessas três peculiaridades mais comuns, psicossocialmente, à época da consolidação da personalidade e da construção de novos olhares, a "aborrescência"). EDIT: Carroll critica o posicionamento simplista de pessoas que buscam uma moral convencional/moralista/absoluta e supostamente apreensível de quaisquer situações, experiências humanas e obras artísticas que sejam, desconsiderando a relatividade dos valores, os significados implícitos e/ou ambíguos, o caráter naturalmente dinâmico e polissêmico de qualquer moralidade, concepções estas representadas pela figura da Duquesa - sempre atribuindo uma moral tradicional a tudo, como nas fábulas. Lewis Carroll, então, partindo dessa premissa, a meu ver, também põe em xeque as convenções e o moralismo (e num cenário tão conservador como o da Inglaterra vitoriana) que se pressupõem inquestionáveis - ou hipócritas - de tantos, constituindo assim um convite sutil ao questionamento da moral vigente e da (re)construção "orgânica" de uma, através da nossa existência concreta - embora ele não vá tão além quanto outros escritores e tampouco pregue a dissolução radical de valores, longe disso em vista de sua posição religiosa. Não é a toa que Alice se impõe à Duquesa: "Tenho todo o direito de pensar", contestando ou revisando as morais pretensamente irrefutáveis e lógicas que esta arranja para toda situação.
1. A aparente ausência de lógica de tantos fatos, na verdade "obedientes" a uma lógica que foge ao convencional do qual estamos acostumados, ou determinados pelo acaso.
2. A descoberta da lógica sutil e não-convencional que permeia tantas situações surreais.
3. O caráter humano, relativizador ou absolutista de acordo com as circunstâncias. A obsessão de muitos em extrair uma lição moral uniforme de todas as situações, ideal encarnado pela Duquesa, em detrimento da verdade múltipla e potencialmente reinterpretativa que podemos apreender de qualquer experiência; a moral ambígua.
4. A ressignificação do discurso e o discurso através de símbolos e de alegorias.
5. A entrada na adolescência, com todos os questionamentos recorrentes, crises de identidade e instabilidade emocional que ela representa, representada por Alice (ela frequentemente se vê presa dessas três peculiaridades mais comuns, psicossocialmente, à época da consolidação da personalidade e da construção de novos olhares, a "aborrescência"). EDIT: Carroll critica o posicionamento simplista de pessoas que buscam uma moral convencional/moralista/absoluta e supostamente apreensível de quaisquer situações, experiências humanas e obras artísticas que sejam, desconsiderando a relatividade dos valores, os significados implícitos e/ou ambíguos, o caráter naturalmente dinâmico e polissêmico de qualquer moralidade, concepções estas representadas pela figura da Duquesa - sempre atribuindo uma moral tradicional a tudo, como nas fábulas. Lewis Carroll, então, partindo dessa premissa, a meu ver, também põe em xeque as convenções e o moralismo (e num cenário tão conservador como o da Inglaterra vitoriana) que se pressupõem inquestionáveis - ou hipócritas - de tantos, constituindo assim um convite sutil ao questionamento da moral vigente e da (re)construção "orgânica" de uma, através da nossa existência concreta - embora ele não vá tão além quanto outros escritores e tampouco pregue a dissolução radical de valores, longe disso em vista de sua posição religiosa. Não é a toa que Alice se impõe à Duquesa: "Tenho todo o direito de pensar", contestando ou revisando as morais pretensamente irrefutáveis e lógicas que esta arranja para toda situação.
Carroll também instiga o leitor infantil, jamais subestimando-o, a procurar construir seus próprios valores baseados na sua percepção de mundo, no confronto entre as opiniões/convicções suas e as alheias - respeitável ou irreverentemente, dependendo das circunstâncias -, em suas reflexões e na melhor maneira de lidar com os obstáculos que a vida impõe, porém nunca transgredindo o bom senso.
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