Mulheres: Segundo a visão Machadiana
O ser “Mulher”: Aspectos históricos
Refletir sobre o gênero é depositar o olhar sobre o mundo, considerando
com propriedade o caráter biológico, o cultural, o histórico, o social, o
ideológico, o religioso. Nesse sentido, o gênero apresenta-nos uma função
analítica que traz à luz conflitos entre homens e mulheres e define formas de
representar a realidade social e de intervir nela.
Tendo em vista essa função analítica a que o gênero se propõe, a humanidade
tem presenciado, ao longo da História, transformações que têm levado a
sociedade humana a um estado de inquietação, e, por que não dizer, de perplexidade.
O que temos vivenciado, no plano das mutações sociais, não se restringe apenas
a uma evolução ou até mesmo a uma revolução dos costumes. Essas mudanças de
paradigmas na sociedade humana não somente questionam nossos comportamentos
como também nossos valores. Elas nos inquietam no que tange ao mais íntimo de
nosso ser: a nossa identidade, a nossa natureza de homem e de mulher. E essas
várias mutações têm servido para que o ser humano reflita sobre si mesmo e
sobre o outro e se afirme como um ser de relações. Para tanto necessita de um
outro para interagir e adaptar-se à vida em sociedade.
Desde a era antiga, a racionalidade, a linguagem, o pensamento têm sido fatores
determinantes na construção do ser humano. Cada fase humana traz uma relação
masculino/feminino com características próprias e cada uma delas traduz as contradições
pertencentes a seu contexto.
Nos primórdios, diferentemente do que crê o pensamento patriarcal, a verdadeira
adaptação da humanidade não foi feita pela violência e, sim, pela solidariedade.
Em outras épocas, as relações eram igualitárias, homens e mulheres viviam
integrados harmoniosamente e cada um desempenhava uma função relacionada com
seu papel. O homem partia para a conquista do mundo e a mulher, que era
considerada mais próxima dos deuses, porque dela dependia a reprodução das
espécies, tinha suas atividades relacionadas ao lar e à família.
A humanidade vivenciou diferentes formas de relacionamento de gênero. No matriarcado,
centrado na mulher; no patriarcado, com foco no homem, e, hoje, com o alvorecer
de um novo paradigma civilizacional, conseguimos vislumbrar um muito além da distinção
dicotômica dos papéis sexuais.
Assim, no decorrer da História, mesmo a realidade nos tendo mostrado a divisão
homem/mulher nos vários tipos de sociedade, com a submissão da mulher ao
domínio do homem, a figura feminina não pôde ser totalmente apagada, pois o “ser-mulher”
é algo essencial que está aí. Ela pode ser eclipsada, subordinada e tornada
publicamente invisível, mas nunca destruída, apagada.
Na sociedade grega, a condição feminina seria ainda mais precária do que
a que se encontra no cenário cultural que foi focalizado por Machado de Assis.
Basta olhar um documento insuspeito para comprovar-se a afirmação. Abra-se a Poética
de Aristóteles, na parte em que o filósofo fala de “Caracteres, Verossimilhança
e Necessidade”, mais precisamente, no capítulo XV, e lá vai-se ler, com todas
as letras:
No respeitante a caracteres, quatro pontos importa visar. Primeiro e mais
importante é que devem eles ser bons. E se, como dissemos, há caráter quando as
palavras e as ações derem a conhecer alguma propensão, se esta for boa, é bom o
caráter. Tal bondade é possível em toda a categoria de pessoas; com efeito, há
uma bondade de mulher e uma bondade de escravo, se bem que o [caráter de
mulher] seja inferior, e o [de escravo], genericamente insignificante.
(ARISTÓTELES, 1992, p. 79)
Na visão do filósofo, a inferioridade da mulher e de sua posição social
ficam atestadas, justificando, assim, o pensamento masculino como instrumento
de poder.
Isto nos leva a pensar que há, por natureza, comandantes e comandados: o
homem livre comanda o escravo, o homem comanda a mulher; esta desprovida de
razão, de vontade, caracterizando-se como elemento subordinado à autoridade
masculina. Para Aristóteles, apesar de pertencer ao gênero humano e possuir a
capacidade de deliberar, a mulher é distinta em relação ao homem, pois a ela
falta a capacidade de decidir.
Temos aí demonstrado o modelo de mulher da época clássica. Ela aparece, no
cenário social, como um bem precioso a ser guardado e preservado e que transmite
prestígio e valor enquanto guardiã dos filhos e do ambiente doméstico. Como
mãe, ela se identifica a um ser intimamente ligado à sua casa, à sua terra, a seu
lar. Como mulher, não é senão um ser que se submete às ordens do homem, às leis
do Estado, incapaz de gerir a própria vida.
Se a mulher, inserida nessa sociedade, tem o mesmo status que os
escravos, portanto, sem o poder de expressão, a tragédia grega evidenciará
perfis que fogem um pouco à regra, ainda que tal audácia seja
severamente punida.
Revela-nos, portanto, nesse traço feminino, um caráter de ação e atitude
tipicamente masculino na sociedade do período Clássico.
Machado: suas personagens femininas
As personagens femininas machadianas foram projetadas por seu criador não
como objeto de posse do masculino, mas como sujeito atuante e identificado com
o seu papel de mulher e como peça fundamental de uma sociedade em construção. Personagens
que são capazes de sair de um mundo de reclusão e submissão para figurar num
espaço social do masculino. Percebe-se que ao adotar tal estratégia, Machado
inova, faz diferente do que se esperava de um homem do século XIX.
Os narradores dos romances machadianos vivem envolvidos em tramas, memórias,
reminiscências, falsas artimanhas, artifícios que têm à mão para envolver os
leitores em inumeráveis embustes, que os conduzem a reflexões e enigmas muitas
vezes indecifráveis. Machado tece suas narrativas de modo que seus leitores,
mesmo os “distraídos”, vão aderindo ao pacto de leitura, na tentativa de buscar
os deciframentos para as situações que lhes são postas. Isso faz parte da estratégia
machadiana em colocar o seu leitor a par dos questionamentos do ser humano e
dos reveses da vida. “O objeto principal de Machado de Assis é o comportamento
humano. Esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras,
pensamentos, obras e silêncios de personagens que representam homens e mulheres
que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império”, conforme Alfredo Bosi
(1999, p.11) evidencia.
Percebemos, nos romances machadianos, por diversas vezes, as referências e
as citações que o romancista faz a grandes obras e grandes escritores e muitas das
citações são literais. Comprova-se, então, que Machado não escrevia para um leitor
qualquer. Seus leitores necessitavam de outras leituras para que pudessem compreender
o sentido que pretendia, pois muitos deles estavam encobertos sob o “manto
diáfano da fantasia” (CANDIDO, 2000, p. 86), o que tornava imperativo um sistema
de chaves para abrir os esconderijos da sólida verdade, e deste modo, ele se
justificava.
Na vasta produção literária machadiana, identificamos marcas realmente inovadoras
e avançadas para aquele período de sua escritura. Por exemplo, ao utilizar-se
de digressões, de tempo psicológico, da estrutura narrativa e discursiva diferenciada,
da conversa com o leitor, Machado dá um salto qualitativo em relação aos seus
contemporâneos, como já foi ressaltado.
Ao construir essas
personagens, Machado de Assis estabelece um novo paradigma para a mulher dentro da sociedade de seu tempo, e, da
mesma forma que nos chama a
atenção no sentido de atentarmos para as mudanças e as novidades que só viriam a se concretizar em décadas posteriores.
Isso significa dizer que o
escritor fluminense conseguiu expressar, através da literatura, não só as marcas do feminino daquela sociedade,
agindo no espaço sócio-histórico do masculino, mas também conseguiu vislumbrar
um mais além, ou seja, a essência do ser
humano.
Quando a mulher surge nas criações artísticas é invariavelmente como musa
inspiradora, objeto de desejo, campo de sonhos, o ponto fraco nas muralhas do inimigo.
Os nomes podem variar, mas a imagem é sempre esta, de objeto, jamais de sujeito
da ação.
No entanto, personagens como Antígona e Electra, criadas por Sófocles,
são quase exceções. Estas personagens femininas, contestadoras e inconformadas
com as leis masculinas que definiam o comportamento do conjunto da sociedade,
foram punidas e tiveram trágico fim, como se impunha na tragédia grega aos transgressores
da moral convencional. Assim, por serem transgressoras desempenharam, naquela
sociedade, um papel diferenciado para a época.
Historicamente, o século XIX foi um período extremamente diferente dos anteriores
em todo o Ocidente. Ao contrário do que ocorrera no passado, o mundo ocidental
vivencia, nesse século, mutações e mudanças de conceitos e paradigmas que
servirão de suporte para uma visão inovadora da humanidade sobre o mundo contemporâneo.
Também para a sociedade brasileira, esse século representou transformações,
tais como: a consolidação do capitalismo, a urbanização das cidades, o que
levou a novas alternativas de convívio social. A ascensão da burguesia e o
surgimento de uma nova mentalidade acerca das relações sociais, que envolvem o
homem e a mulher, representaram alterações na concepção e na ocupação dos
espaços público e privado.
Nesse contexto de mudanças, Machado de Assis, ao escrever a sua obra, traduz,
de forma inovadora, as relações sociais e humanas dessa sociedade em transformação.
Utiliza-se desse mesmo contexto como matéria-prima para suas histórias,
retratando criticamente os problemas, as preocupações, os costumes e as tradições,
os ideais da vida burguesa carioca na época do Segundo Reinado.
Nenhum escritor foi tão atento às mudanças que ocorreram nessa época quanto
Machado, pois, no seu exercício literário, foi capaz de expressar, de forma significativa
e contundente, os fenômenos e as manifestações sociais de seu tempo.
As mulheres machadianas
No Brasil do século XIX, o Romantismo era dominante na Literatura. E
posto em palavras, virou regra nas casas e rodas burguesas. Apesar de exagerar
em um drama no qual se prega um modo de vida utópico, sonhos e amores
impossíveis, além de idealizações de como devemos nos comportar, ser e estar, a
escola literária reinou absoluta. E era consumida, sem pudor, pela sociedade.
Desse modo serviu para fortificar valores considerados ideais, para ideais
modos de vida.
As velhas heroínas do Romantismo, detentoras de atributos tais como a
devoção, sensibilidade à natureza, superação de obstáculos, o anseio pelo
casamento, aspiração materna, entre outras características, brotavam dos livros
de cabeceira. Muito conveniente àquela época que se pregasse tal discurso a fim
de manter ordem na sociedade - com o homem e a mulher colocados em seus devidos
lugares.
É neste contexto que Machado de Assis rejeita com o Romantismo,
influenciando não somente a literatura, mas, também, toda uma linha de
pensamento no Brasil. Segundo alguns críticos do escritor brasileiro, ele
jamais pertenceu, de fato, ao Romantismo. No entanto, mantinha alguns pontos de
contato com a escola literária, mesmo desobrigando-se de seus cânones.
Atrelando-se ao Realismo, Machado – extremamente analítico e reflexivo –
mantém um diálogo honesto com o leitor, tratando questões sociais e emocionais
de forma objetiva. Claramente, Machado utiliza-se da sutileza psicológica para
emaranhar suas tramas, num contexto acerca das questões e condições humanas. A
loucura, ironia e a crítica são intrínsecas aos seus escritos.
O fascínio do autor pelas mulheres levou-o a concentrar suas narrativas
em suas heroínas, alterando o eixo narrativo, criando um estilo inovador para a
época. Machado de Assis evidencia o que nunca fora antes evidenciado, como as
ações, emoções e pensamentos da alma feminina, uma vez que concedeu à mulher,
importância equivalente ao herói. A alta relevância que o autor concede às suas
mulheres faz com que seus outros personagens sejam mais rasos, de uma
psicologia menos complexa.
Elas, portanto, tornam-se o ponto central de toda a narrativa. Em uma
oposição às heroínas do Romantismo, são providas de personalidades marcantes. O
autor as capacitava para conduzir a trama por outro viés, imprimindo em cada uma
delas ambição, paixão e razão como nenhum outro escritor brasileiro.
Talvez por ter começado sua carreira escrevendo para revistas e, assim
sendo, para um público esmagadoramente feminino, Joaquim Maria Machado de Assis
adquiriu notável destreza ao falar sobre as mulheres, para as mulheres. Ele foi
muito fiel às suas leitoras. Conversava com elas e delas aprendia.
Ler Machado nos envolve em uma atmosfera passional e racional ao mesmo
tempo. E ele retrata, muito soberbamente, esse paralelo na vida de suas
personagens. As mulheres machadianas são deliciosamente reveladas em uma
sensual coragem e desinibição para lutar pelos próprios ideais.
A maneira apaixonada e meticulosa com a qual ele descreve toda a forma,
todos os traços, todo o movimento e os olhares destas mulheres, o caracterizam
não somente como um observador do universo feminino, mas, Machado vai além:
torna-se cúmplice desse universo.
Assim, a modernidade de Machado não fica evidente apenas na tessitura do
texto, mas também na maneira como constrói suas personagens. Há de se destacar
aqui a personagem feminina Virgília, Sofia e, principalmente, a personagem
Capitu – considerada uma das mais bem construídas da literatura. Isto
porque o romancista fluminense não poupou a pena ao criar essa tão poderosa
figura, capaz de assumir a condição de ser “palavra”, enquanto mulher, em uma
sociedade aristocrática do século XIX, no Rio de Janeiro. A autonomia e a
perspicácia com que Machado desenha Capitu têm seduzido leitores e os levados
ao encantamento, o que tem suscitado o interesse de inúmeros estudiosos.
Contudo, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos a primeira
personagem feminina construída sob a ótica da nova Escola –
Virgília – cujo adultério com Brás Cubas é levado a efeito menos por paixão
amorosa e mais pelo sensualismo.
Sem seguir a cronologia de suas obras realistas temos em Capitu de Dom
Casmurro (1899) sua principal criação de uma personagem feminina.
Ela é a mais discutida, a mais famosa, e seria repetição falar sobre a
grande dúvida em que o escritor deixa o leitor sobre o adultério da esposa de
Bentinho – o romance abre-se num leque com opções a favor ou contra o fato.
No entanto, o sensualismo volta a marcar a personagem (especialmente na
cena em que Capitu seduz Bentinho), construída com a maior sutileza
psicológica, mostra o apelo sexual no comportamento de uma mulher ainda
adolescente.
Capitu, uma de suas personagens femininas, que
talvez seja a mais intrigante. Ela é vista em Dom Casmurro como sedutora e fascinante,
com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
Capitu se desprende das páginas do romance escrito
por Bento Santiago e se instala em nossas existenciais, criatura tão real que
parece saída da própria vida. Alta, morena, cheia de corpo, de longos cabelos
grossos que lhe desciam pelas costas, olhos claros, extremamente mulher. Capitu
é dona de uma poderosa atração que concerne no olhar.
Bentinho amou-a e sucumbiu a sua misteriosa atração,
que o impelia a ser um pouco daquilo que ela era. Capitu é mais mulher que
Bentinho era homem, era mais sensual, mais inteligente, mais madura, sendo,
portanto, quem dirigia os destinos de ambos. Capitu não tem candura, a
ingenuidade das donzelas românticas, nem é fêmea naturalista dominada pelo
sexo. Ela é o protótipo da mulher moderna do século XX, avançada demais para
sua época, quando a mulher ainda não havia descoberto o seu erotismo e a sua
independência. Sua personalidade, desejada por Bentinho, também o fez suspeitar
do adultério dela com Escobar e a punir com o exílio.
Com seus olhos de cigana
oblíqua de dissimulada, Capitu simboliza a alma negativa de Bentinho
em contraposição coma alma positiva de dona Glória,
a mãe
de Bentinho. Para Bentinho Capitu trouxe-lhe a
vida, mas também a morte de Escobar, visto que este faleceu no mar. O mar simboliza um
contexto no qual a personagem feminina é inserida, pois o mar de angústia passa a ser sua
vida com as suspeitas
de Bentinho sendo, pois, comparado ao mar que engoliu Escobar. A morte para Capitu é simétrica a
morte de
Bentinho, enquanto o segundo morre aos poucos pela
incerteza do
adultério, ela morre a distância de sua terra natal.
Contudo, para ajudar a compreender ainda mais a mulher, delimitada
historicamente do Segundo Império no Rio de Janeiro, terá um peso importante a
tradição literária da qual Machado faz parte, fazendo referências não só ao local,
mas também ao universal. Diante disso, iremos reconhecer na primeira personagem
feminina esculpida pelo escritor, Marcelina que faz referência à mulher
romântica.
A construção da personagem feminina no conto machadiano deve ser
observada a partir de dois ângulos.
O primeiro, e fundamental, é o fato de essas personagens virem do
imaginário masculino do qual elas são fruto; o segundo ponto seria o sistema
patriarcal vigente na época que refletirá diretamente na vida destas
personagens influenciando e governando seus destinos.
O universo de Machado é repleto de mulheres interessantes que irão
revelar sua essência através de seus relatos e o ambiente em que vivem, o
narrador ajudará a perceber o papel delas dentro de uma sociedade patriarcal e
revelará o enigma de cada uma delas. Machado é conhecido por ter sua obra
dividida em duas fases e isso se reflete na construção de suas personagens
femininas.
Portanto, as figuras femininas, desta segunda fase, evidenciam a
necessidade de se ater às convenções para conseguir vencer, movem-se nos
degraus sociais articulando dotes físicos, interesse e desejo, são espontâneas e
altivas, aqui já não cabem as personagens do tipo “mocinhas”, pois estão
atreladas a valores morais que limitam seus movimentos dentro da trama,
deixando-as pouco interessantes. O casamento, para essas personagens, servia como
alavanca para a ascensão social e dava uma relativa desenvoltura e um maior
domínio nas relações sociais, visto que saíam de um estado de ignorância. Nesse
período, temos personagens femininas fortes que vão além dos limites que lhe
são impostos. Uma dessas é Capitu que buscou no casamento sua ascensão social.
Pode-se afirmar, entretanto, que Machado é um homem de seu tempo que
buscou tecer suas personagens conforme a própria transformação da figura
feminina dentro da sociedade.
Capitu, uma de suas personagens femininas, que
talvez seja a mais intrigante. Ela é vista em Dom Casmurro como sedutora e fascinante,
com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
Já Sofia, personagem feminina do romance Quincas Borba, apresenta, diferentemente
do que se esperava da mulher dessa sociedade em que se exigia dela uma
representação de amor e dedicação ao marido e aos filhos, onde constrói uma
imagem de mulher desembaraçada, desenvolta, mercantilista e surpreendente. Ela
foi capaz de transitar num campo de domínio masculino, fazendo uso de seus atributos,
para que pudesse ascender socialmente. Utiliza-se de Rubião para satisfazer
seus caprichos e faz dele trampolim para alcançar o que desejava.
Palha – o marido e homem de conveniências, mesmo
tendo conhecimento do comportamento impróprio da esposa – silencia-se com o
intuito de realizar seu grande sonho: fazer parte da sociedade elitista da
época e Rubião era o instrumento imprescindível para concretizar o que tanto
almejava.
Percebe-se claramente que Machado de Assis, ao
desenhar o perfil da personagem Sofia, tem a intenção de evidenciar que a
mulher, na sua visão arguta, não mais estaria reclusa ao ambiente doméstico – ou
submissa às ordens do marido. E que, de acordo com a mentalidade avançada que o
romancista tinha acerca das mudanças ocorridas naquele século, não caberia à
mulher simplesmente o papel de dona-de-casa, esposa e mãe. Machado evidencia
que a mulher queria mais, um muito além.
O casamento por aparência e o
erotismo na obra machadiana
No que tange às figuras femininas, elas apresentam algo insondável que os
homens que com elas se relacionam não logram compreender. Dito de outra forma:
aos personagens masculinos resulta algo incognoscível da natureza da mulher que
eles não atingem. Desconfiados, e sem alcançar esclarecimentos para as suas
dúvidas, agitam-se nessa terra movediça agarrando-se a qualquer indício que
reforce a sua racionalidade, incapazes que se mostram de capturar a essência
dos sentimentos femininos.
Vários dos perfis femininos criados por Machado de Assis geram nas
figuras masculinas uma espécie de perplexidade, porque as mulheres, mesmo sem
enunciarem explicitamente o seu desejo, parecem de alguma forma realizá-lo. Se
por um lado a mulher é enigmática, por outro o homem fracassa quando pretende
decifrar o seu caráter esfíngico. A dúvida, ou a incapacidade de compreender, é
predominantemente masculina. Brás Cubas sucumbe ao discreto jogo de
infidelidade de Virgília, Bentinho amarga a perene incerteza acerca da traição
de Capitu.
O narrador demonstra ser incapaz de entender as oscilações da alma
feminina. O silêncio textual no que se refere ao sentido predominante e mais
profundo da atitude da mulher (outra marca machadiana) pode ser lido de várias
formas.
O erotismo que este estudioso destaca é o erotismo dos corações e, com
isso, podemos perceber a relação de Brás Cubas com Virgília. Nesse tipo de
paixão é um elemento importante, pode-se desligar inteiramente daquele outro
tipo de erotismo como também pode conduzir à fusão dos corpos. Brás Cubas e
Virgília são movidos pela paixão, pelo desejo de estarem juntos, tanto que
preparam uma casinha destinada ao encontro dos dois. O sentimento que nutre
pelo outro leva a consumar essa relação, que se dá com a fusão dos corpos.
Porém, o sentimento não acaba quando não há mais esse encontro. Quando Virgília
vai visitar Brás Cubas, que estava doente, percebemos o carinho e respeito que
ela nutre por ele. A paixão e o desejo se transformam em amizade, na qual não
há mais a fusão de corpos, mas há a completude dos corações, fazendo com que
Virgília também não perdesse o poder de sedução, tanto que Brás Cubas ainda
enxerga a beleza de outros tempos:
Vírgilia tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal;
estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João,
na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos
escuros a intercalar-se de alguns fios de prata. (Assis, 1997a, p. 106)
Brás descreve Virgília mais como uma amiga do que como sua ex-amante. A
relação entre ambos transgride a moral da época e mostra que mesmo aqueles que
pregavam bons costumes, que tinham poder para isso, às escondidas denegriam a
própria moral. Percebemos no romance as relações extraconjugais era comum,
nenhum dos dois eram punidos pela sociedade e a relação entre eles termina como
se fosse um namoro entre casais solteiros.
Embora, o Código Civil daquele século sacramentava a inferioridade da
mulher casada em relação ao marido. Ao homem, chefe da união conjugal, cabia a
representação legal da família, a administração dos bens do casal como também
os particulares de sua esposa. Ou seja, essa ordem jurídica incorporava e
legalizava o modelo que concebia a mulher como dependente e subordinada ao
homem e este como senhor da ação. Vale dizer ainda que cabia ao marido a
administração e o usufruto de todos os bens, inclusive dos que tivessem sido
trazidos pela esposa no contrato de casamento.
Usos e costumes da época revelam que o âmbito do poder do marido ia mais longe
do que o previsto pela lei. A ele cabia deliberar sobre as questões mais importantes
que envolviam o núcleo familiar: a apropriação e a distribuição dos recursos
materiais e simbólicos no interior da família, o uso da violência considerada “legítima”,
o controle sobre aspectos fundamentais da vida dos familiares, como as decisões
de escolha do tipo e local da formação educacional e profissional dos filhos.
Delineava-se, cada vez mais e com maior nitidez, a oposição entre as
esferas pública e privada. Ao homem cabia a identidade pública, à mulher, a
doméstica. Essa era a base necessária para a harmonização das relações
conjugais e familiares.
A organização familiar era representada pelo casamento e quando realizado
entre famílias ricas e burguesas era tido como símbolo de ascensão social ou
como forma de manutenção do status. Portanto, era uma hipocrisia total,
pois viviam casamentos de aparência, sem amor, e com traições ocultas.
Já com a
personagem Capitu foi diferente, pois ela vinha de uma família pobre e não
havia meios de manter o status social que não possuía. O pai, Pádua, era
empregado de uma repartição pública e possuía o suficiente para o sustento da família.
José Dias, ao se referir ao pai de Capitu no romance, caracteriza-o como Tartaruga.
Esse apelido faz alusão a um réptil aquático que só vem a terra para a desova,
assim sendo, pode-se perceber por inferência pela voz do agregado as “verdadeiras”
intenções do pai de Capitu em casar a filha com Bento Santiago; já que este era
um rapaz de posses e poderia, com o casamento, assegurar-lhe um futuro
promissor.
As mulheres
tinham, a partir dessa visão burguesa, a função de contribuir para a construção
do projeto familiar, através de sua postura nos salões, como anfitriã; e, no
cotidiano, como boas esposas e abnegadas mães. A ideia de que ser mulher é ser
quase integralmente mãe dedicada e atenciosa passa a ser reforçada, servindo
como máscara social. E esse ideal só podia ser atingido no ambiente familiar.
No capítulo
33, O Penteado, por exemplo, Capitu demonstra o seu ímpeto feminino, ao
tomar a iniciativa do primeiro beijo ao realizar o ato de sedução. Bentinho, ao
penteá-la, tem uma sensação de enlevo, de deleite. Alisa os cabelos de sua
amada, faz-lhe as tranças, amarra-lhe as pontas... E num momento de sedução:
Capitu derreou a
cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o
espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas
trocados, os olhos de um na linha da boca do outro. Pedi lhe que levantasse a
cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava
feia; mas nem esta razão a moveu.
- Levanta,
Capitu!
Não quis, não
levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para outro, até que ela abrochou
os lábios, eu desci os meus, e... (ASSIS, 2004, 844.)
Bentinho, atordoado e perplexo ante a desenvoltura com que Capitu dá-lhe
o primeiro beijo, permanece imóvel, junto à parede, sem ao menos pronunciar uma
palavra sequer. Tal atitude, por assim dizer, audaciosa para uma mulher daquela
sociedade, fez com que o namorado ficasse impassível, quase sem entender o que a
levara a tão desmedida iniciativa.
Mais uma vez fica evidente a autonomia com que Capitu age diante de tais situações.
E configura-se a presença dela em um espaço social que não lhe era próprio. É
ela que toma a iniciativa, que age, que cerca, que caça o amado, seduz, enquanto
o mais próprio seria ele tomar a iniciativa.
No campo das ambiguidades, vale enfatizar também a personagem Sofia e sua
insidiosa relação com Rubião. No capítulo em que são surpreendidos pelo Major Siqueira,
temos um texto cheio significações múltiplas:
- Olá! Estão
apreciando a lua? Realmente, está deliciosa; está uma noite para namorados...
Sim, deliciosa... Há muito que não vejo uma noite assim... Olhem só para baixo,
os bicos de gás... Deliciosa! Para namorados... Os namorados gostam sempre da
Lua. No meu tempo, em Icaraí... Era Siqueira, o terrível major. Rubião não
sabia que dissesse; Sofia, passados os primeiros instantes, readquiriu a posse
de si mesma; respondeu que, em verdade, a noite era linda; depois contou que
Rubião teimava em dizer que as noites do Rio não podiam comparar-se às de Barbacena,
e, a propósito disso, referia-se a uma anedota de um Padre Mendes... Não era
Mendes?
- Mendes,
sim, o Padre Mendes, murmurou Rubião. (ASSIS, 2004, p.673)
Estampam-se, no texto, várias ideias: a de que os dois estavam no alto, enlevados,
como dois namorados que alcançaram a lua. Aliás, o major diz que a noite era
“deliciosa” e de que “Há muito que não vejo uma noite assim...”. Estaria ele dizendo
das delícias de Sofia? Das delícias de ver uma noite em que flagrava a bela mulher
do Palha em delito amoroso, numa traição escancarada? Assim, “olhar para baixo”
pode muito bem significar a advertência para que o casal prestasse atenção à opinião
alheia, que prestasse atenção na claridade (os bicos de gás) que os punha a descoberto.
É ainda notável perceber uma homologia entre as personagens machadianas. Basta
ver como Sofia se recompôs imediatamente, afetando, logo em seguida, a mais
cândida naturalidade, enquanto Rubião fica vexado, calado, pondo tudo a perder.
Pode-se ver que Sofia está para Capitu, do mesmo modo que Rubião está para
Bentinho. Mais uma vez, tem-se a predominância da mulher sobre o homem, bem de
acordo com os princípios projetados pelas duas narrativas.
O estilo de vida da elite dominante era marcado, no Brasil, por
influências do imaginário da aristocracia portuguesa, em que se distinguiam a
casa-grande e a senzala. As alcovas, espaço de intimidade e de individualidade,
serviam, principalmente, às mulheres como lugar de segredos, de explosão de
sentimentos: lágrimas de dor ou de ciúmes, saudades, declarações amorosas
contidas, leitura de romances pouco recomendáveis.
A interiorização do espaço doméstico, principalmente de casas ricas,
abriu-se para uma espécie de apreciação pública por parte de um restrito
círculo de parentes e amigos. As salas de visita e os salões – espaços
intermediários entre o lar e a rua – eram considerados “máscaras sociais”, onde
se impunham regras para bem receber e bem-representar diante das visitas. Esses
espaços eram abertos de tempos em tempos para a realização de festas, jantares,
saraus, cujo objetivo primordial era apresentar as lindas moças aos distintos
rapazes, para que eles pudessem escolhê-las e desposá-las.
Mais uma vez a personagem Sofia, em Quincas Borba, é o exemplo. O narrador
faz questão em evidenciar como Palha se sentia orgulhoso da mulher e como este
sentia prazer em ostentá-la no meio social.
O pior é que ele
despendia todo o ganho e mais. Era dado à boa chira; reuniões freqüentes,
vestidos caros e jóias para a mulher, adornos de casa, mormente se eram de
invenção ou adoção recente, - levavam-lhe os lucros presentes e futuros. Salvo
em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao teatro sem gostar dele,
e a bailes, em que se divertia um pouco, - mas ia menos por si que para
aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa vaidade
singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para
mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules,
mais restrito por um lado, e, por outro, mais público. (ASSIS, 2004, p.669)
É muito instigante perceber o prazer de Palha em exibir os dotes físicos
da mulher. Podem-se ver aí as perversões do “voyeurismo” e do “exibicionismo”.
De um lado, Sofia se deixa contemplar, derivando prazer em ser “comida com os
olhos” masculinos. De outro, a perversão ainda maior de Palha que reúne os dois
mecanismos: do mesmo modo que lhe é altamente prazeroso exibir a mulher, o fato
de contemplá-la na sua exuberante sensualidade como que o leva à fruição.
Com a descrição da personagem Sofia, Machado realça ironicamente o universo
das futilidades e das conveniências que conduziam os integrantes da alta sociedade
carioca do século XIX e serve-se dela também para, de certo modo, patentear a
história das elites brasileiras.
Assim, as festas promovidas pela sociedade burguesa eram uma boa oportunidade
de ostentar a aparência, os cuidados com a beleza e a educação que receberam.
Isso porque os freqentadores desses espaços, principalmente os homens em
disponibilidade para o casamento, deveriam prestar atenção à beleza, à faceirice,
à elegância, ao encanto das mulheres, ou seja, ao conjunto de “adereços” que as
moças casamenteiras usavam, para que pudessem então escolher aquela que
desposaria, e seria a mãe de seus filhos e representaria a sua condição social.
O teatro e a ópera eram programas cotadíssimos, assim como os bailes da Corte e
os saraus literários nas casas dos bem-nascidos.
As mulheres Machadianas e o
contexto histórico
As obras da fase realista de Machado de Assis têm como cenário a cidade
do Rio de Janeiro do final do século XIX e inicio do século XX; seus
personagens são representantes autênticos da sociedade burguesa vigente na
época, as narrações são sempre conduzidas por protagonistas masculinos o que
nos leva a crer que a mulher é sempre mostrada a partir de um ângulo que revela
a visão do homem a respeito da condição feminina. Partindo do pressuposto de
que a sociedade da época era fortemente marcada pelo patriarcalismo e que nessa
condição a figura feminina ideologicamente estava submissa ao homem, não é de
se estranhar o fato de que na maioria das vezes são atribuídas à mulher
posturas negativas. Por enquanto, vale citar apenas algumas características de
Capitu, personagem do clássico Dom Casmurro: Adúltera, dissimulada e
muito sensual.
Outro aspecto relevante que deve ser salientado a priori é o fato de que no século XIX a sociedade brasileira
sofreu uma série de transformações que culminaram no advento do capitalismo e
na consequente urbanização que passou a permitir novas formas de convivência
social. Diante disso, cabe aqui frisar, que a ascensão da burguesia trouxe para
a sociedade uma nova mentalidade, uma maneira diferente de organização das
vivências familiares e domésticas. O homem agora está diante de uma mulher que
se entrega facilmente à sensibilidade e as novas formas de pensar o amor.
“Presenciamos ainda nesse período o nascimento de uma nova mulher nas
relações da chamada família burguesa, agora marcada pela valorização da
intimidade e da maturidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor,
filhos educados e esposa dedicada ao marido e às crianças e desobrigada de
qualquer trabalho produtivo, representavam o ideal de retidão e probidade, um
tesouro social imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente
fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela como forma
de proteção ao mundo externo marcaram o processo de urbanização do país.”
Com o advento dos “novos tempos”, os quais são marcados pelas mudanças de
caráter político, social e econômico, a mulher até então presa ao ideário da
família patriarcal ganham certas liberdades e ocupa novos espaços. Porém, ao
mesmo tempo em que ganha maior liberdade passa a desempenhar novas funções
dentro do âmbito das vivências domésticas. Agora, a mulher tem que se ocupar do
lar, dos filhos e do marido e ainda ser sua companheira na vida social.
O mundo familiar, mostrado por Machado de Assis nos romances da fase
romântica, contrasta com os da fase realista. Os textos da primeira fase
mostram mulheres solitárias, tias solteironas ou viúvas que procuram favorecer
a felicidade de seus protegidos. Há exemplos de moças pobres que amam homens
que lhe são proibidos. Nessas relações há sempre uma barreira entre o amor e o
casamento. São amores impossíveis. Contudo, os romances machadianos escritos a partir
de 1881, trazem famílias predominantemente urbanas formadas quase sempre pelo
núcleo: Marido, esposa e filhos. Nesses romances, situações de conflitos são
uma constância: Triângulo amoroso, sentimentos ambíguos, ciúmes, casamentos de conveniências
e relações amorosas tediosas. A figura feminina é sempre a causadora do
conflito, a mulher descrita por protagonistas essencialmente masculinos tem na maioria
das vezes uma imagem negativa.
O crítico Alfredo Bosi aponta características pertinentes no que se
refere à vida social das personagens femininas criadas por Machado de Assis.
Segundo esse autor, são mulheres que procuram tirar proveito das relações
afetivas para vencer na vida, elas têm uma fase inicial em que estão
subordinadas a uma situação desfavorável, depois procuram dar um salto
prendendo-se a casamentos de interesse.
Nos romances da fase realista, as personagens femininas já estão com
status elevado por terem conseguido casamentos sólidos, agora elas dão-se ao
luxo de arquitetar namoros adulterinos, casos de Virgília em Memórias Póstumas
de Brás Cubas. Nesse quesito, Capitu, personagem de Dom Casmurro, é
o grande mistério, não sabemos exatamente o que ela fez, se traiu ou não o
marido.
O lugar da mulher na obra Machadiana
Segundo Proença Filho[2], nos romances de Machado de Assis há um destaque para
as figuras femininas. Porém, a mulher é muitas vezes retratada com traços de
mau caráter, embora em alguns casos ele a privilegie como ser dotado de
inteligência e cultura. Exemplo de Virgília.
Já Virgília, em Memórias Póstuma de Brás Cubas, mulher astuta e
pretensiosa, abandona Brás para casar-se com Lobo Neves devido ao fato deste
seguir carreira política e desfrutar de posição social mais elevada. No entanto,
para satisfazer suas vontades pessoais torna-se amante do antigo namorado.
Dentre as personagens da fase romântica de Machado de Assis, merece destaque
à figura de Helena, do romance homônimo, ela aproxima-se de Estácio fingindo
ser sua irmã com o propósito de receber parte da herança, é outro exemplo de personagem
feminina de Machado que se aproxima do sexo oposto por interesse.
Falaremos agora, de Capitu, personagem forte e marcante do romance Dom
Casmurro, menina pobre que como muitas mulheres de sua época procura
ascender de classe social à custa do casamento e para isso usa de forma
surpreendente suas principais características: Calculista, interesseira,
complicada, dissimulada, sedutora, dona de um corpo alto, forte, moreno, olhos
claros e grandes, nariz reto e comprido. Capitu é mulher de vontade firme e
determinada como as demais personagens femininas de Machado de Assis que sempre
têm presença determinante no desdobramento do enredo.
Mediante a condição de mulher brasileira do século XIX, Capitu vê seu casamento
Com Bento Santiago como a única maneira de subir na vida e alcançar uma posição
social que pudesse lhe conceder estabilidade financeira, para isso não mede esforços
e faz uso de artimanhas com o propósito de desafiar as condições impostas às mulheres
da época.
Os olhos da personagem Capitu refletem muito de sua personalidade.
Através deles Machado de Assis constrói uma personagem múltipla e complicada, o
que consequentemente complica também a compreensão do leitor. É difícil afirmar
se ela é honesta ou desonesta, sabe-se apenas que se trata de uma figura humana
envolta em um universo de enigmas sutis a serem decifrados com opções contra e
a favor do seu possível adultério. Capitu é sem dúvida a principal personagem
feminina das obras realistas de Machado. Segundo Rangel[3], “o sensualismo marca a personagem, construída com
a maior sutileza psicológica, mostra o apelo sexual no comportamento de uma
mulher ainda adolescente”. Esse sensualismo pode ser constatado por exemplo, na
cena em que Capitu seduz Bentinho. Ao falar sobre o olhar de Capitu, Montenegro[4] nos dá a seguinte opinião:
“Esse olhar é a nossa miscigenação, a nossa aparente submissão, são as
nossas olheiras amorosamente gulosas, quentes e erotizadas. É o olhar que
denuncia a marginal vitória desse ser mulher colonizado. Olhar de quem
dissimuladamente aceita o jogo surdo, silencioso, de carrasco e vítima. Jogo fascinante
e cruel na aparente aceitação das diversas manifestações do relacionamento
humano”.
Essa luta dolorosa da personagem relevada por intermédio do seu olhar
fascina Dom Casmurro porque ela é jogada no campo da dúvida. Os olhos mostram o
que desejamos ver por meio deles. É também o reflexo, a projeção de quem olha.
O olhar de Capitu certamente representa as aspirações das mulheres do seu tempo
no que se refere à busca das mesmas por um melhor espaço na vida social.
Ainda discorrendo a respeito de Capitu, sabemos que ela é uma personagem estável,
não se modifica no curso da estória. A problemática do olhar, o jogo de sedução
permanece no decorrer da narrativa. Com seus “olhos de ressaca” e de cigana oblíqua
sai bem de situações difíceis, exemplo do episódio do penteado e da inscrição no
muro:
“Capitu
riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito (Capítulo XIII). Capitu compôs
depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou a porta, ela abanava a cabeça
e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo
e claro” (Capítulo XXXIII).
Em torno do olhar e dos olhares de Capitu nota-se que ela desde a
adolescência já começa a preparar o salto social que deseja, faz isso por meio
do jogo de sedução e manipulação. A comparação entre os olhos de ressaca com as
ondas demonstra a capacidade que ambos têm de atrair e atemoriza suas vítimas
através do fascínio: “... olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia
daquela feição nova. Traziam não sei que fluído misterioso e enérgico, praia
nos dias de ressaca.”
Descrição das personagens femininas
Virgília
Ela está no romance Memórias
Póstumas de Brás Cubas que é, também, um marco significativo para a
nossa literatura. Não só pela inovação de sua estrutura narrativa à época de
sua publicação, como também pela construção da protagonista dessa obra
machadiana.
Ao estruturar esse romance do fim para o início, começando a narrativa
com o capítulo Óbito do Autor e usando como narrador da trama um
defunto, que, em clima de brincadeira, dialoga com o leitor durante todo o
romance, Machado de Assis adota uma postura moderna, até então não utilizada
por nenhum outro romancista brasileiro. Também aí a figura da mulher recebe um
toque refinado pela pena de Machado, ao projetar Virgília com um perfil
diferenciado para a época.
E esse narrador defunto adota, também, como Bento Santiago, a estratégia narrativa
para “distrair” o leitor, utilizando todos os disfarces possíveis para contar
as suas memórias, a sua vida de feitos e fracassos, inclusive a sua história de
amor.
Roberto Schwarz aponta para o tipo de narrador “escorregadio” em Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
Qual das fisionomias de Brás é a verdadeira? Está claro que nenhuma em particular.
Tanto mais que a situação narrativa é troça notória ela também (o defunto
autor), o que baralha as coordenadas da realidade ficcional.
Noutras palavras, faltando credibilidade ao narrador, as feições que constantemente
ele veste e desveste têm verdade incerta, e tornam-se elemento de provocação,
esta sim indiscutível. Idem para a indefinição, ou para a troça, que
destabilizam o estatuto literário: deixam planar, com a dúvida sobre o gênero,
o risco de uma estocada não-regulamentar. O terreno é movediço, e cabe ao
leitor orientar-se como pode, desamparado de referências consentidas, e tendo
como únicos indícios as palavras do narrador, ditas em sua cara, com
indisfarçável intenção de confundir. Uma espécie de vale-tudo onde, na falta de
enquadramento convencionado, a voz narrativa se torna relevante em toda a
linha, forçando o leitor ao estado de sobreaviso total, ou de máxima atenção,
própria à grande literatura. (SCHWARZ, 2000, p.23)
O que se percebe no trecho de Schwarz é que Machado, pela voz de Brás, tenta,
como num jogo de máscaras, “brincar” com o leitor, e este, ao aprofundar-se no
texto, sente-se enganado ao ver que o narrador quis apenas lhe fazer “troça”. É
de fato nesse dizer e desdizer que o narrador Brás vai envolvendo o leitor de
modo a inseri-lo no tecido narrativo, sem que este se dê conta que as
artimanhas, postas como verdades, são apenas “brincadeiras” entre narrador e
leitor.
Machado, ao apresentar-nos Virgília, tal como no caso de Capitu, não
poupa recursos para construir sua figura. Ele a projeta para desempenhar um
papel audacioso naquela sociedade aristocrática. Vale ressaltar que a
personagem Virgília, apesar de ter sido construída de forma atípica e de modo
diferenciado por seu criador, não tem o mesmo brilho e a desenvoltura de
Capitu, mas com a sua habilidade própria consegue transitar no espaço público,
ocupado pelo masculino, e ser capaz de “violar as regras do jogo” social
daquele século.
Ficamos conhecendo tal personagem pela voz de Brás Cubas, o narrador defunto.
Ao narrar as suas memórias, o leitor toma conhecimento de suas peripécias e
trapaças e o significado que tiveram Marcela e, principalmente, Virgília em sua
vida.
A propósito do capítulo 27, intitulado Virgília, Brás nos dá o
retrato da personagem:
Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois? ... A mesma;
era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e
que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações.
Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais
atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo
que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque
isto não romance, em que o autor
sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não
digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita,
fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno,
que o indivíduo passa a outro indivíduo, para fins secretos da criação. Era
isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de
uns ímpetos misteriosos, (...) (ASSIS, 2004, p. 549)
Como se vê, Virgília é astuciosa, ousada e elegante. Tem interesse em ascender
socialmente e, para tanto, não mede sacrifícios para alcançar seus objetivos.
Participa das festas da vida burguesa carioca e faz questão do bom e do melhor,
em que se incluem as audácias da elegância moderna tanto quanto as vantagens da
situação tradicional.
Na narrativa, essa protagonista do romance, ainda jovem, conhece Brás
cujo pai tinha interesse em casá-lo com a moça com o propósito de fazê-lo
deputado, através da influência do futuro sogro. Entretanto, isso não acontece
e Virgília casasse com Lobo Neves, pessoa influente naquele meio social. Apesar
de frustradas as perspectivas de Brás Cubas, ele, como narrador, apresenta
Virgília com todas as características de grandeza de uma mulher diferenciada.
Casada com Lobo Neves, Virgília vive uma vida familiar aparentemente “sólida”,
aos olhos do social e do político, mas mantém um idílio amoroso com Brás, que
lhe proporciona aquilo que lhe faltava no casamento: o ardor da paixão. Assim, ao
se tornar amante de Brás, ela lhe faz uma proposta audaciosa de alugar uma casa
para ambos, onde distante dos olhares curiosos pudesse salvaguardar a sua reputação.
Fina e elegante, mulher e casada, adota a arte da dissimulação para disfarçar o
seu comportamento adulterino. Essa estratégia utilizada para a sua dupla realização
pode ser tomada como característica de mulher avançada e autônoma em sua época.
E assim, no decorrer da narrativa, Brás apresenta-se perturbado ou temeroso
das consequências que poderiam advir daquele relacionamento com Virgília. No entanto,
até mesmo durante a enfermidade e morte do amante, é Virgília que aparece para
visitá-lo e levar-lhe palavras de conforto. E ela, soberba e imponente, e não
se preocupando com os olheiros, chora “verdadeiras lágrimas” pela morte de seu
amado. Dessa forma, ousa e desafia as regras impostas para aquelas mulheres do
século XIX.
Capitu
Conhecer Capitu implica também conhecer Bento Santiago, o narrador do romance,
e sua trágica história. É com ele, por ele e nele que a figura de Capitu torna-se
visível aos olhos dos leitores. Nesse romance, o narrador arguto é capaz de montar
estratégias a todo instante, para que o leitor seja envolvido e absorvido pela narração.
Ao apresentar Capitu, Bentinho não utiliza recursos do senso comum. Ao contrário,
ele o faz, apontando para uma figura feminina envolta por algo nebuloso, encoberta
em mistérios, velada por um “manto diáfano” de sedução. Como já foi dito, é
através de Bentinho, o narrador casmurro e mergulhado em sua casmurrice, e só por
ele, que o leitor conhece a voz e a imagem de Capitu. É por seu intermédio que também
conhecemos os acontecimentos que a envolvem, seus comportamentos e posturas,
seus trejeitos e suas transformações.
Hélio de Seixas Guimarães, em seu livro Os leitores de Machado de
Assis, atesta o caráter ardiloso do narrador e o caminho arriscado a
percorrer pelo leitor desse romance.
Em Dom Casmurro, a figura do leitor passa a incluir também o risco
da interpretação inerente ao processo de leitura, e o lugar que lhe é prescrito
torna-se mais ambíguo do que em qualquer dos romances anteriores. Desta vez o
leitor é explicitamente convocado a participar do processo literário na condição
de intérprete, completando lacunas, tirando conclusões e fazendo julgamentos
do que lhe é relatado. (...) em Dom Casmurro a nostalgia melancólica
apela à empatia do leitor. Ao mesmo tempo em que o narrador Bento Santiago
procura convencer-nos da sua versão do ocorrido, ele vai deixando pelo caminho
falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas,
constituindo-se em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. (GUIMARÃES,
2004, p. 215)
Roberto Schwarz comprova, em Duas Meninas, o estatuto de enigma do
romance machadiano e das ciladas armadas pelo narrador, ao apontar que:
Dom Casmurro (1899) é um bom ponto de partida para apreciar a
distância, na verdade o adiantamento, que separava Machado de Assis de seus compatriotas.
O livro tem algo de armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada
for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros,
ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma. (SCHWARZ, 1997, p. 9)
Figura de tragédia, Capitu é o símbolo da dissimulação: criminosa e
vítima ao mesmo tempo, atada a qualidade que a perderam, é mais um anátema que
benção a sagacidade com que manobra o seu pequeno mundo doméstico. Incapaz de
amar, mesmo a Escobar, de quem teve o filho que Bentinho não lhe podia oferecer,
a síndrome da maternidade apenas disfarça o trágico destino de sibila, a
cumprir ordens míticas. Morre Escobar, Capitu é mandada para a Suíça, onde
também morre. Capitu aceita à punição sem reclamar, confundindo o leitor: será
que tudo não passou da mente doentiamente ciumenta de Bentinho?
De armadilha em armadilha, o narrador vai apontando ora para a infância
dos enamorados adolescentes, ora para a ida de Bentinho ao seminário, ora para
a provável traição de Capitu e sua ida à Europa, para a morte de Escobar;
enfim, para a solidão que impera na casa do Engenho Novo, sem que o leitor se
dê conta de que a história é contada a partir da perspectiva do advogado
casmurro, Bento Santiago. Mais uma estratégia machadiana.
Sofia
A terceira figura feminina a ser abordada está no romance Quincas
Borba. Pela voz de seu narrador, Machado projeta aos leitores a imagem da
personagem Sofia, dando a ver ao leitor a trajetória de elegância,
determinação e ousadia dessa personagem que, tal como Virgília, viola as
convenções sociais.
A técnica de despistamento utilizada pelos narradores machadianos é aqui também
reforçada. Ao traçar a história, o narrador, para construir a personagem Sofia,
recorre às mesmas artimanhas já conhecidas em outras obras, como Dom Casmurro
e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Tomando a personagem Sofia, vê-se que ela se compõe a partir de uma tríplice
visão. Primeiramente, pela perspectiva do narrador que ressalta seus atrativos
de sedução e seu charme, o que a aproxima do adultério; em seguida, a Sofia que
se comporta avessa à pobreza e consegue ascender socialmente, orgulhosa de seus
dotes físicos, com os quais consegue aparecer naquele mundo dos ricos, utilizando-se
do marido Palha para alcançar o seu intento; e a Sofia construída pela
imaginação de Rubião, a mulher cobiçada que pode satisfazer todos os seus
desejos.
Graças à sua habilidade, o narrador que, ao descrever o perfil feminino
de Sofia, a envolve efetivamente em um jogo duplo de sedução, fazendo-a
mostrar-se e esconder-se, a oferecer-se e a negar-se, a avançar e a recuar,
entre idas e vindas em que se projeta numa ambiguidade constante. Ambigüidade
que se explicita também em todos os seus comportamentos. Nesse jogo duplo, que
a caracteriza, reside a sua identidade como mulher forte, decidida, dominadora,
que ocupa um lugar não próprio para a mulher de seu tempo.
Indo à narrativa, encontramos Sofia, esposa de Cristiano Palha que, pelos
disfarces adotados pelo narrador e aos olhos de um leitor desavisado, parece manter
um relacionamento “quase íntimo” com Rubião, o rico herdeiro de Quincas Borba.
Relação esta que acontece sob os olhos e o consentimento disfarçado do marido.
Cheia de artificialismos, característica marcante daquela sociedade do final do
século XIX, aproveita-se de seu parceiro e amigo para circular no mundo de ostentação
e riqueza daquela vida carioca, seu maior desejo, ambição e objetivo.
Tida como calculista e interesseira, Sofia utiliza todos os instrumentos
à sua disposição, afiados pelo marido, para conseguir essa sua subida e a sua participação
no estamento. “Com tais golpes e com tais armas alcança-se a ociosidade
elegante, a riqueza sem escrúpulos, a irradiação do poder”, conforme atesta
Faoro. (FAORO, 2004, p. 17)
Conforme a narração, desde o encontro no trem, na estação de Vassouras, que
Sofia, acompanhada do marido, encontra Rubião, já se sentem atraídos um pelo outro.
Através de olhares e poucas palavras, ali já se estabelece o que se poderia considerar
como um relacionamento nada comum entre uma mulher casada e um homem solteiro,
encantado pela elegância e charme de Sofia.
A partir desse encontro, começam as visitas assíduas de Rubião à casa de Sofia,
a troca de olhares profundos, o toque de mãos cada vez mais ardente... A propósito
do capítulo XXXV, o narrador desenha o perfil de Sofia.
As senhoras
casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte de
cinco anos; mas Sofia primava entre todas elas. Não seria tudo o que o nosso
amigo sentia, mas era muito. Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um
escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias.
Essas esculturas lenta são miraculosas; Sofia rastejava os vinte e oito anos;
estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o
escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho, por
dois ou três anos.
Os olhos, por
exemplo, não são os mesmos da estrada de ferro quando o nosso Rubião falava com
o Palha, e já sublinham nada; compõem logo as coisas, por si mesmos, em letra
vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capítulos inteiros. A boca
parece mais fresca. Ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz
ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos. (ASSIS, 2001, p. 668)
E nesse mesmo capítulo, o narrador aponta para o poder que Sofia exercia sobre
os homens e o prazer do marido em exibi-la em público.
Era dado à boa
chira; reuniões freqüentes, vestidos caros e jóias para a mulher, adornos de
casa, mormente se eram de invenção ou adoção recente, - levavam-lhe os lucros
presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez
ao teatro sem gostar dele, e a bailes, em que se divertia um pouco, - mas ia
menos por si que para aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios.
Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não
podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. [...] A princípio,
cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais foram as admirações colhidas,
e a tal ponto o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela (Sofia) acabou gostando
de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros.
(ASSIS, 2001, p.669)
Pela descrição da personagem, ressalta-se a juventude, o corpo escultural
de Sofia e o ardor da paixão instilado no amante, pois tudo nela favorece ao
jogo da sedução. Destacam-se também seus dotes físicos que Palha, o marido,
fazia questão de exibir. Mas, o mais importante é que Sofia usa
intencionalmente de seus atributos físicos, não para o simples jogo de sedução
barata. Pelo contrário, ela faz com que esse seu poder erótico lhe renda o
“status” social pretendido pelos seus objetivos em concorrer com o masculino.
Bosi (1999) aponta para uma leve semelhança entre Sofia e Capitu quando diz
que nos momentos mais difíceis, tanto uma como a outra tornam-se “reconcentradas,
reflexivas, atiladas, capazes de disfarces rápidos, certeiras na invenção de
expedientes”. O mesmo podemos defender para Virgília como já foi colocado
anteriormente.
O relacionamento potencialmente suspeito não constrange nem um pouco Sofia,
pois em todos os momentos em que eles se acham em situações embaraçosas, ela
dissimula e se desvencilha de tais situações com naturalidade.
Por fim, algumas atitudes de Sofia demonstram o duplo da personagem que
ora se apresenta sedutora e ardorosa por Rubião e outras vezes manifesta um estranhamento
com que até ele mesmo se surpreende. Surpreendente é pouco para caracterizá-la,
visto que ela é senhora e dona da palavra, conforme está atestado em “Rubião
tremia, não achava palavras; ela achava todas as que queriam [...]”.
Por mais que tente ser agradável a Rubião, ela, às vezes, não consegue disfarçar
o tédio que ele lhe causa, pois o real interesse de Sofia era que Rubião lhe servisse
apenas de trampolim para tornar-se uma mulher rica.
A amizade entre o casal e Rubião floresce e este entrega a Cristiano
Palha a responsabilidade de administrar-lhe os bens, deixados por Quincas
Borba. Palha soube fazê-lo muito bem, pois, aos poucos, vai investindo a
herança que Quincas deixara para Rubião em seu nome, tornando-se um homem
“valoroso” e “cheio de posses”, bem ao gosto de Sofia.
É o caso, então, de perguntar se a loucura de Rubião, seus delírios, o
seu fim trágico não teriam sido aguçados por Sofia? Talvez sim, pois há de se
acreditar que, mesmo sendo mulher e inserida naquela sociedade tão arraigada de
princípios considerados morais, Sofia não os cumpriu. E ao transgredi-los,
circulou no espaço social público onde só os homens faziam carreira.
[1]
D’INCARO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa.
In: ENGEL, Magali G. Imagens femininas em romances naturalistas brasileiras.
Rio de Janeiro. Xenon, 1989 p 1
[2]
PROENÇA FILHO, Domício. Depoimento
sobre Machado de Assis. Disponível em: HTTP www.machadodeassis.org.br/2005/academica13.htm
Acesso em: 01/10/2010
Excelente!! Obrigado por compartilhar esse artigo!
ResponderExcluirMuito bom, mesmo!
ResponderExcluirMe ajudou muito a compreender a figura feminina na visão machadiana.
como citar esse artigo?
ResponderExcluircomo fazer a citação correta deste artigo?
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